Carta Capital

A lente invertida

Obra em CD-ROM e livro revê passado sem excluir versão dos derrotados

Por Nelson Letaif

A história é sempre escrita pelos vencedores. Aos vencidos, os compêndios costumam reservar pouco mais que uma nota de rodapé. Viagem pela História do Brasil, uma obra em CD-ROM e livro editada pela Companhia das Letras em fase de lançamento nacional, não padece de tais pecados. E isso graças não apenas à possibilidade de remissões cruzadas proporcionadas pela linguagem do CD-ROM que permite saltar do texto principal para aprofundamentos paralelos com conforto e rapidez. A razão principal está no fato de os autores – Jorge Caldeira, Flavio de Carvalho, Claudio Marcondes e Sergio Goes de Paula – inscreverem-se em uma vertente historiográfica para a qual o processo histórico é produto de circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais, e por isso impossível de ser compreendido pela análise de apenas uma das partes em confronto. Nem por isso caíram na armadilha de transformar os perdedores em vítimas e idealizar o que poderia ter sido o passado se a vitória tivesse pendido para o outro lado, segundo a tradição do determinismo histórico.

Miscigenação. Algo muito distinto é transformar em protagonista aquele que a historiografia tradicional tratou como figurante, a exemplo do que propõem os autores em relação aos indígenas. A miscigenação, como em geral é contado seu importante papel na formação étnica do povo brasileiro, parece ter começado não com casamentos entre índios e portugueses, mas destes com negros. Para muitos, entre eles Gilberto Freire, o motor desse processo estava embutido no caráter dos portugueses, em razão de sua "natural" permissividade sexual. Viagem..., ao contrário, é enfática ao apontar a gênese da miscigenação como um dado estrutural presente desde a chegada dos primeiros colonizadores ao Brasil e explicar sua utilização como um método de conquista e convivência com os nativos. Pelos costumes locais, um estranho só era aceito na tribo caso aceitasse unir-se a uma de suas índias. Uma vez selada a união, podia contar com os novos "parentes" para abastecer uma rede própria de escambo.

"Não demorou para que esses europeus se adaptassem por completo à nova situação, tornando-se quase índios. Num mundo que concebia o encontro racial pela ótica do domínio, a ocupação do Brasil se faria não só pela guerra, mas também pelo casamento. O resultado dessa fusão está estampado na face miscigenada do brasileiro atual, na simpatia para com os estranhos, na aceitação da sexualidade, na comida, no hábito do banho."

Na visão da equipe dirigida por Caldeira – autor de Mauá, Empresário do Império –, essa capacidade de adaptação e de tolerância talvez seja a pedra angular sobre a qual repousa o caráter do povo formado pela combinação de raças tão distintas. Mas, ao lado dessa característica, instalava-se já no berço da Nação uma contradição com conseqüências para seu futuro. Se para aqui viver o europeu devia deixar de lado a superioridade de uma civilização já iniciada nos segredos da metalurgia e da navegação transcontinental, para produzir ele precisava da mão-de-obra escrava. Estava plantada a semente de uma sociedade a um só tempo maleável e excludente do ponto de vista social, conciliadora, mas autoritária.

Politicamente correto. A obra destaca como foi importante a participação dos portugueses indianizados para o sucesso das capitanias hereditárias. Na Bahia, onde os métodos de conquista prescindiram de sua colaboração, os colonizadores viviam um inferno, ao contrário de São Paulo e Pernambuco, onde puderam conviver de forma relativamente pacífica com os nativos graças à mediação, no primeiro caso, de João Ramalho e, no segundo, de Duarte Coelho e Jerônimo Albuquerque. Neste ponto, na linha do politicamente correto, Viagem... se detém em analisar o papel desempenhado por uma mulher, Brites de Albuquerque – mãe de Duarte e irmã de Jerônimo:

"Por volta de 1553, quando o marido retornou a Portugal com os filhos Jorge de Albuquerque e Duarte Coelho de Albuquerque, ela se tornou ‘capitoa e governadora’ da capitania. Nessa condição, travou guerras com índios e enfrentou revoltas de colonos. Nunca perdeu o comando nem deixou de mandar dinheiro para os filhos que estudavam em Lisboa e para o Tesouro real".

Como membro de uma tribo, o estrangeiro participava de guerras contra nações rivais e dividia com os demais os despojos dos vencidos, inclusive os próprios, transformados em escravos que alimentavam o tráfico interno no País, quando não vítimas de práticas canibais. Quanto a estas, os autores traduzem qual era o seu significado para os índios, muito diferente da visão de barbárie que dela tinham colonizadores e jesuítas:

"Dos vários rituais indígenas, o que mais atraiu a atenção dos europeus foi o da antropofagia. Provavelmente surgido em função da época de guerras, o ritual estava muito longe da selvageria. Era antes uma homenagem à coragem do adversário batido em combate... Sua coragem era testada durante todo o tempo, e esperava-se que demonstrasse altivez para merecer morte tão importante".

A reação dos colonizadores com certas características dos nativos, interpretadas como sinais de atraso, é encarada pelos autores de Viagem... como fruto do choque cultural. Embora estivessem ainda no estágio da pedra polida, já tinham feito progresso em domesticar plantas selvagens pelo cruzamento e hibridação, criavam certas espécies animais de estimação e conheciam bem as propriedades medicinais de espécies vegetais.

"Desde o início os europeus se espantaram com o imenso conhecimento que os índios da floresta tropical tinham das propriedades e usos farmacêuticos das plantas... O tempo encarregou-se de mostrar a importância desse imenso conhecimento prático. Cerca de três quartos de todas as drogas medicinais de origem vegetal hoje conhecidas provêm de fórmulas aperfeiçoadas pelos índios.

Acumulação. A estranheza do colonizador com o nativo era recíproca, percebe-se em um dos mais de 90 documentos transcritos integral ou parcialmente na obra. Um relato feito pelo francês Jean de Léry, integrante da expedição que veio fundar a França Antártica no Rio de Janeiro no século 16, deixa patente a dificuldade dos índios em apreenderem, por exemplo, o sentido que a acumulação de riqueza tinha para os brancos. Trata de um diálogo mantido por Léry com um velho tupinambá, curioso em saber se na terra do estrangeiro não havia madeira suficiente para queimar. A resposta, positiva, veio acompanhada de ressalva. Lá havia também muitos negociantes ávidos em trocar o pau-brasil por espelhos e outras quinquilharias. O índio retrucou:

"Agora vejo que vós outros mairs (franceses) são grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados".

Entre o final do século 16 e meados do seguinte, as demandas do projeto açucareiro transformariam a surpresa dos índios em estupor. Quando o controle do tráfico internacional de escravos africanos caiu nas mãos dos holandeses, secou a fonte de suprimento da mão-de-obra para os engenhos nordestinos. Foi substituída pela escravização em massa dos indígenas, sobretudo guaranis aldeados pelos jesuítas na região das Missões, no extremo sul. O tráfico interno passou a ser suprido principalmente pelos bandeirantes paulistas, cuja sanha dominadora só se acentuaria com a descoberta de metais preciosos na região central do País.

Integração. Nesse momento, os autores de Viagem identificam um terceiro fator estrutural na formação do povo brasileiro, relativo à unidade territorial, lingüística e cultural. Transformada em centro da economia no prazo de poucas décadas, Minas Gerais atuou como um pólo de atração de homens e mercadorias, agregando o que antes era disperso, e exigindo da Metrópole uma ação de controle até então desnecessária. Estradas tiveram de ser abertas para permitir que uma legião de aventureiros se abastecesse de víveres, estabelecendo comunicação entre os extremos do País.

"Ocorrendo num momento em que grande parte do território já havia sido conquistada pelos próprios filhos da terra, e em que algum sentimento de brasilidade já havia sido forjado na luta contra os holandeses, o resultado foi manter unido um povo que tinha muitas razões para se dispersar."

As migalhas do ciclo do ouro desperdiçadas por Portugal geraram uma elite da terra, em parte permeável às idéias libertárias que varreriam o planeta no ocaso do século 18. O projeto de nação independente acabou neutralizado pelo surgimento do Império, período em que o antagonismo entre os valores subjacentes aos processos de miscigenação e escravidão só fez se acentuar.

"Dessas tendências contraditórias nasceriam caminhos opostos, que a unidade da Coroa permitiu conviverem. De um lado a idéia de fundar as instituições sobre a base de abertura dos casamentos mistos, com a transformação de índios e escravos em cidadãos. De outro, a tentativa de reforçar a distância entre o topo e a base, com a transformação dos senhores de escravos em nobres. Cada uma deixou seus traços. A primeira, o hábito das eleições e a força do Parlamento; a segunda, a realidade crua da falta de cidadania e direitos, a imensa distância econômica entre os brasileiros."

Embora reconheçam ter faltado força ou vontade aos liberais para passarem das boas intenções aos fatos, um filme em cartaz até hoje, os autores da obra não deixam de considerá-los uma força antagônica importante à vertente autoritária e excludente. Esta sempre prevaleceu, é verdade, na guerra ainda em curso pela apropriação do Estado brasileiro, tomado de assalto pelas classes dominantes. "Mas não dá para explicar o surgimento de uma figura como o regente Feijó só pela visão patrimonialista do Estado brasileiro", diz Jorge Caldeira. Em todo caso, esclarece muita coisa, entre elas o fato de o Brasil ter sido um dos últimos países a abolir a escravidão, e em conta-gotas administrado pelos conservadores. Na versão da República nascente, o argumento do direito divino usado para justificar a pretensa superioridade da oligarquia foi substituído pela competência técnica, endossada pelo positivismo então vigente.

Após o crash de 1929 atingir em cheio a cultura cafeeira e sepultar a República Velha, na década seguinte, pela primeira vez, a participação da indústria na riqueza nacional ultrapassaria a da agricultura, embora a elite agrária mantivesse a hegemonia política. O agigantamento do Estado a partir de Vargas, longe de promover a distribuição de renda, instituiu a prática dos mercados fechados e criou os amigos do rei, com acesso privilegiado aos financiamentos oficiais. A Constituição de 1946 preservou a herança estadonovista, levada ao paroxismo pela ditadura militar – com as conseqüências políticas e sociais tão conhecidas dos brasileiros.

"O que sempre foi tensão criativa transformou-se quase em ruptura durante o regime militar. Excluídos os canais tradicionais de abrandamento – fórmulas flexíveis, arranjos inovadores e o reconhecimento da importância na formação do país daqueles que nunca tiveram direitos –, as diferenças antes suportáveis logo se tornaram conflitos inconciliáveis. E pior, numa fórmula que era contrária ao andamento dos tempos na civilização ocidental, então aberta e em mudança.

Subtexto otimista. Enfraquecidos por suas divisões internas, os militares deixaram o governo, mas mantiveram seu ideário no poder até hoje, por meio de seus representantes civis. Aí está o PFL no governo para não deixar dúvidas a respeito. Não se trata de conclusão de Viagem..., cujo mergulho na história se encerra em 1984. Em todo caso, a obra contém um subtexto otimista, confirmado por declarações do diretor do projeto, se aplicado ao governo Fernando Henrique. A desestatização poderia neutralizar um dos instrumentos mais poderosos de dominação ao qual as elites têm recorrido.

Estas e outras idéias polêmicas, assim como algumas omissões e erros de informação, a exemplo da filiação de Martim Afonso de Sousa, prometem render um caloroso debate pela Internet, no site www.historiadobrasil.com.br. Será a última fase do projeto que consumiu mais de dois anos de trabalho e investimentos de aproximadamente R$ 750 mil, dos quais 40% financiados aos autores pelo banco BBA. O CD-ROM está sendo vendido com o livro por R$ 65,00. O livro também pode ser adquirido separadamente, por R$ 23,00. Com Viagem..., os autores esperam "ter contribuído para ajudar cada brasileiro a situar suas opções próprias para o futuro".