CBN

Domingo, 8 de junho de 1997

ENTREVISTA À RADIO CBN

PROGRAMA NOTÍCIA NA MANHÃ

CARLOS FERNANDO

Vamos rescrever agora a História do Brasil. Índios com largo domínio da vida nos trópicos subitamente se vêem às voltas com europeus em busca de riquezas. Em pouco tempo, um precisa do outro. Os primeiros, para obter instrumentos de ferro; os segundos para encher navios de mercadorias, aprender a comer frutas diferentes, plantar na época certa, sobreviver na realidade luminosa e desconhecida. A solução? Adotar o antigo costume indígena de oferecer uma mulher em casamento ao recém-chegado. Do casamento surgiria o brasileiro, adaptado aos trópicos, mas ligado à civilização ocidental. E logo senhor de escravos, aventureiro da floresta, elite e povo mesclado da terra. Em dois séculos e meio esses brasileiros garantiram o domínio de um território gigantesco, pautando-se pela ausência de preconceito sexual e pela violência social. Deste contraste nasceria a Nação e seu problema, não resolvido até hoje: um país que precisa da democracia para vencer a exclusão, e da exclusão para garantir uma elite entranhada de escravidão. Mas também uma Nação com potencial: sociedade aberta para todo tipo de imigrantes, capaz de grandes arranjos adaptativos, dotada de forte identidade cultural. Vamos rescrever a história do Brasil.

Entrevista

Carlos Fernando - Conversando com o jornalista e historiador Jorge Caldeira, que está lançando, ao lado aí do Flavio de Carvalho, Claudio Marcondes e Sergio Goes de Paula pela Companhia das Letras o livro Viagem pela História do Brasil. Jorge Caldeira, muito bom dia.

Jorge Caldeira - Bom dia, Tudo bem?

CF - Tudo bem, parabéns pelo livro, antes de mais nada, pelas ilustrações, pelo projeto gráfico, que desperta o interesse do leitor, viu Jorge.

JC - Muito obrigado. Isso foi uma preocupação que a gente teve de fazer uma história do Brasil que fosse tão bonita quanto é fascinante a história do Brasil, né. E eu fico feliz em saber que isso resultou, que você gostou.

CF - Pois é, e no tempo da ditadura, quando a gente estava ainda nas carteiras escolares, até porque a história estava sendo naquela época acobertada em função de problemas políticos, tal, a gente ouvia dizer que fato histórico só se valia de 50, 100 anos aproximadamente, e vocês desmitificam isso colocando fatos inclusive muito próximos aqui ao nosso já falando inclusive, deixa eu ver aqui a última, a última informação...

JC - É a eleição do Tancredo Neves.

CF - Isso foi em 84, 85, não é isso?

JC - 85.

CF - 85. Quer dizer, vocês avançam bem o período histórico de análise, não Jorge?

JC - Avançamos. Eu acho que aí é tranqüilo, quer dizer o fim do governo militar foi o fim de um ciclo, começo de uma mudança no Brasil que continua vindo até hoje, e então até lá é possível a gente dizer mais ou menos com alguma clareza o que aconteceu, né. Eu acho que é importante que o brasileiro saiba a sua história até recentemente, porque uma das coisas que aconteceu durante o regime militar foi criar uma versão, vamos dizer assim, da história do Brasil, que acabou com o interesse da história, né. O brasileiro em geral tem a impressão, por causa dessa, é típico isso de regime militar, de contar uma história da pátria que é muito laudatória e que as pessoas não acreditam nela.

CF - É, acabar com a história ou sentir vergonha das próprias raízes.

JC - Que é o que é pior ainda.

CF - Que é pior ainda.

JC - Isso é uma das coisa mais horríveis que aconteceu no Brasil: foi que o brasileiro passou a ter a impressão que ele vive num país que tem uma história que não é boa e que não tem futuro porque não teve passado. O que eu procurei fazer nesse livro foi mostrar que o Brasil é um país que foi feito pelo cidadão comum e não pelos grandes iluminados, né. Em geral, em regime militar as pessoas acham que os grandes iluminados devem dirigir o país, né, não aceitam voto, não aceitam participação dos, vamos dizer assim, dos de baixo na história, né.

CF - Quer dizer, vocês como grandes historiadores e antropólogos assim como o sociólogo Darcy Ribeiro e tantos outros que a gente vem conversando, o professor Roberto da Matta, tal, vocês se encarregam também da iconoplastia, vocês quebram algumas histórias que foram contadas de maneira distorcida como você mesmo disse para apresentar uma versão um pouco mais real aqui as nossas origens, né Jorge.

JC - O que eu procurei fazer foi contar a história do brasileiro, quer dizer, quem fez, porque é a mesma coisa que contar a história do Brasil. Quem fez o Brasil foi o cidadão comum, foi o tropeiro que entrou no mato e criou a cidade, foi o agricultor da zona de fronteira, foi o pequeno comerciante, foi o pequeno sitiante, foi essa gente que fez o Brasil que fez tudo no Brasil, a cultura do Brasil, o conhecimento que nós temos do Brasil, o comportamento aberto da sociedade brasileira foi feito pelo cidadão comum. A elite brasileira, em geral, é gente que ficava em poucas cidades e conhecia muito pouco do Brasil, em geral uma elite ligada mais antigamente à Europa ou coisa assim e que não conhecia nada e contribuiu pouco para formar o que hoje é o Brasil, formar o progresso do Brasil, a cultura do Brasil, o potencial do Brasil é o cidadão comum, não é a figura ilustrada.

CF - E vocês se guiaram de que forma, quer dizer, a origem do texto do livro Viagem pela História do Brasil surgiu o quê, de pesquisas em cima de outros livros escritos ou vocês tiveram que rescrever e recontar muitos assuntos, Jorge.

JC - Bom, primeiro são duas coisas, quer dizer, tem um livro e tem também um CD, um CD-ROM para computador, que é uma versão mais completa um pouco que a do livro, é uma versão maior, bem mais completa que o livro; e para fazer isso nós recorremos a uma documentação muito grande, muito grande, fomos pegar todas, porque a história do Brasil, ela não foi contada sempre do mesmo jeito, nós fomos pegar as histórias que se contavam na época, de cada época e vermos o que estava acontecendo em cada época. Então trabalhamos com muita documentação do século XVI, XVII, XVII, XIX, e buscando nela a cara do brasileiro, e existe muita documentação para isso. Então, o que tem de novidade nesse livro foi trazer essa documentação que estava quase esquecida de volta, para gente pensar sobre ela. E aí quando você trabalha assim, trabalha com essa visão você vai descobrindo coisas que são muito importantes. Por exemplo, o Brasil é um país que tem o hábito de eleição mais arraigado do mundo, o Brasil faz eleições desde 1823, com muita regularidade. Isso é uma coisa que pouca gente sabe, que é muito estável a vida parlamentar brasileira, nós temos um Congresso que funciona regularmente a 170 anos. Para você ter uma idéia do que é isso, só tem dois países no mundo que têm um Congresso mais antigo que o Brasil, a Inglaterra e os Estados Unidos. Isso é uma coisa que é relativamente simples, basta você constatar isso, mas que pouca gente tem idéia.

CF - Só a Constituição que se a gente for comparar com esses dois países que você citou ela fica tão a desejar que acaba sendo obrigada a vários remendos como estão fazendo agora nessa revisão atual, sem contar o tamanho da nossa Constituição que não dá nem para comparar com a Constituição americana, por exemplo, né, Jorge?

JC - Pois é, mas os remendos, que aliás não são remendos, são mudanças muito importantes são absolutamente necessários porque, isso o livro acho que mostra de alguma maneira, quer dizer, o regime militar deixou uma herança administrativa e legal no Brasil que é um dos maiores desastres da história do Brasil. Por quê? Porque deixou, ele procurou, como todo o sistema que está em extinção, guardar todos os privilégios que tinham sido construídos ao longo dos anos de autoritarismo, e isso não é coisa que se acaba do dia para a noite, tem privilégios de toda espécie embutido na vida legal brasileira. Aí não é só a Constituição Quer dizer, as reformas da Constituição são necessárias hoje para desamarrar pequenos atos administrativos e que vão até uma prefeitura pequena. Isso é uma coisa que pouca gente percebe. Por exemplo, uma das coisas que tem: todos os estados e municípios estão falindo por causa dos inativos. Mesmo que você mande embora funcionário e seja econômico como administrador, isso vale para um prefeitura pequena, as suas despesas de pessoal aumentam porque você tem que pagar privilégios. Às vezes uma centena de aposentados especiais custam mais para um estado pequeno do que todo o funcionalismo. Esses são privilégios que foram sendo construídos ao longo de vinte, trinta anos e que para ser desmontado demora mesmo. Isso não é coisa que você possa, vamos dizer, resolver do dia para a noite na Constituição. Então essa herança ainda vai levar muitos anos para ser desfeita, quer dizer, para o Brasil ter uma administração adequada a uma sociedade aberta, uma sociedade de economia aberta, economia aberta se caracteriza basicamente por relações com as outras economias, você pode importar bastante, o governo não controla essas coisas, a adaptação da sociedade brasileira para isso vai demorar muitos anos. Agora, o Brasil tem potencial para isso, isso é que é o importante, quer dizer, o Brasil tem um potencial histórico de estar preparado para uma vida aberta. Nós nos esquecemos disso, acho provavelmente, essa foi a grande coisa do regime militar, foi contar uma história do Brasil como se fosse um país tão especial que não tem paralelo nas outras histórias, e não estaria adaptado.

CF - Jorge, você está conversando com a gente por telefone sem fio, é isso?

JC - É, tem algum probleminha?

CF - Por esse motivo a gente está com problema de comunicação com você. Mas a gente tem que fazer a rede para falar do tênis, nós temos um repórter que está dentro do estádio de Roland Garros. Então eu quero te agradecer demais, lembrando que o livro Viagem pela História do Brasil já está aí nas livrarias, é um livro que tem um tratamento gráfico fantástico, informações importantes, que aproxima a história até o período pós regime militar quando a gente tem de volta as eleições pró-democracia. E junto com o livro vem também um CD-ROM, né Jorge.

JC - É isso, é.

CF - Obrigado pela sua entrevista, prazer em ouvi-lo Jorge.

JC - Imagina, muito obrigado a você. Grande prazer, um abraço a todos os ouvintes da CBN.