| Fabricação de canoas indígenas O alemão Hans Staden esteve duas vezes no Brasil na primeira metade do século XVI. Na segunda, foi aprisionado em Bertioga por índios antropófagos, com os quais conviveu durante meses até ser resgatado por um navio francês. Ao retornar à sua terra, escreveu um livro contando suas experiências, publicado em 1557, que é um dos documentos mais preciosos sobre os anos iniciais do Brasil colonial. "Existe lá, naquela terra, uma espécie de árvore, que chamam igá-ibira. Tiram-lhe a casca, de alto abaixo, numa só peça e para isso levantam em volta da árvore uma estrutura especial, a fim de sacá-la inteira. Depois trazem essa casca das montanhas ao mar. Aquecem-na ao fogo e recurvam-na para cima, diante e atrás, amarrando-lhe antes, ao meio, transversalmente, madeira, para que não se distenda. Assim fabricam botes nos quais podem ir trinta dos seus para a guerra. As cascas têm a grossura dum polegar, mais ou menos quatro pés de largura e quarenta de comprimento, algumas mais longas, outras menos. Remam rápido com estes barcos e neles viajam tão distante quanto lhes apraz. Quando o mar está tormentoso, puxam as embarcações para a praia, até que se torne manso de novo. Não remam mais que duas milhas mar afora, mas ao longo da costa viajam longe." [Extraído de Hans Staden, Duas viagens ao Brasil, trad. de Guiomar de Carvalho Franco, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1988. (1a ed., 1557)] |
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| Nos primeiras décadas após a descoberta do Brasil foi intensa a presença em nosso litoral de navios de todas as regiões da Europa, que aqui aportavam em busca de pau-brasil, madeira usada no tingimento de tecidos. Como pagamento aos índios, distribuíam objetos como espelhos, ferramentas de ferro e quinquilharias. Neste documento, Enrique Montes, faz um relatório de uma dessas expedições, realizada em 1527. Isso é o que eu, Enrique Montes recebi por mandado do senhor general na ilha de Santa Catarina, para o mantimento da gente desta armada e fazer a galera chamada "Santa Catalina": Primeiramente em 10 de novembro, recebi de Miguel Rifos duas dúzias de tesouras, uma de tesouras grandes e a outra de pequenas. Item, recebi do supracitado uma dúzia de espelhos pequenos. I tem, recebi de Alonzo Peraza 400 anzóis de tamanho médio. Item, recebi de sua Mercê 512 anzóis pequenos de alfinete. Item, recebi do tesoureiro Juan de Junco 5 libras de cristalinos. Item, recebi do supracitado tesoureiro 4 dúzias de pentes pequenos. Item, recebi, em 10 de dezembro, 4 dúzias de facas de baixa qualidade, dadas pelo Senhor Capitão General; também recebi de sua Mercê outras 3 dúzias da mesma qualidade, perfazendo 7 dúzias. Item, também recebi de Antonio Ponce 34 cunhas. Item, também recebi de Mestre Pedro, ferreiro, 82 cunhas. Item, também recebi do tesoureiro Gonzalo Nuñez, em 13 de fevereiro, uma dúzia de facas. Relação do gasto que eu, Enrique Montes, fiz por mandado do Senhor Capitão General na ilha de Santa Catarina, de 10 de novembro de 1526 a 3 de fevereiro de 1527, do que resgatei para o mantimento e casas e outras coisas necessárias para esta armada, que entrego a Antonio Ponce, Alonzo Peraza e Juan Miguel, então mordomo do Senhor Capitão General e despenseiro da nau capitânia, bem como do que eu, Enrique Montes, gastei em coisas e serviços para a dita armada por mandado do dito Senhor Capitão General, não podendo essas coisas ser entregues aos ditos mordomos e despenseiro: Primeiramente, comprei 273 veados, que custaram 273 cunhas e 273 anzóis médios. Também comprei 398 galinhas, que custaram 70 cunhas, 40 facas e 30 anzóis médios. Também comprei 2 antas, que custaram 2 cunhas grandes e 4 tesouras, e dados a 20 homens que as trouxeram, 20 punções, além dos donos das antas. Também comprei 80 patos, que custaram 20 cunhas e 6 anzóis. Também comprei 52 cabaças de mel em favos, que custaram 40 cunhas, 12 tesouras e 52 anzóis, dando, depois de feita, 4 barris e meio com mais ou menos 14 arroubas. Também dei, por 2 porcos monteses, 2 cunhas e 2 punções. Também dei, por 5 cargas de milho, 5 cunhas e 5 anzóis. Também dei, por 2 porcos, adagas, 2 facas e 2 anzóis. Também dei, por 20 cargas de carvão, 4 cunhas, 2 facas e 10 anzóis. Também dei, por 2 parafusos grandes da nau perdida, uma faca. Também dei, por uma canoa a serviço da dita armada, uma cunha e uma faca. Também dei, por 4 remos para a dita canoa, 4 punções. Também dei, por 200 perdizes grandes, 80 facas, 2 perdizes por faca, e pelas 40 restantes, 80 cristalinos, que pesaram uma libra. Também dei, por fazer os alpendres em que se fez a galera, a 16 índios principais que os faziam, 16 facas, porque os faziam de madeira. Também dei, por serviço na casa dos serradores, 2 facas. Dei, por 25 feixes de palha para a dita casa, 25 anzóis. Também dei, pela casa em que estava a despensa do vinho, 4 facas. Também dei, por serviço na igreja, duas facas. Também dei, pela palha, 25 anzóis. Também dei, ao primeiro índio que foi às naus, por mandado de sua Mercê, uma cunha. Também dei, por 200 feixes de arcos para as pipas, 400 cristalinos, que pesaram 4 libras. Também dei, por 20 feixes de vime para os ditos arcos, 20 punções. Também dei, por 26 cargas de ostras, 2 tesouras, 25 punções e 24 anzóis Também dei, por 5 cabaças de banha, 5 cunhas e 5 anzóis. Também dei, por 2 cavalos armados (tatus), 2 cunhas. Também dei, por 2 cargas de barro, que trouxeram de longe do arraial, cerca de 4 léguas, 2 facas e 2 anzóis, o qual era para a forja. Também dei, por 2 cargas de carne assada para os índios que trabalhavam e serviam tirando madeira da montanha, em gratificação, 4 veados, 2 porcos, 2 facas, 6 punções e 6 guizos. Dei, por 2 cargas de peixe moído, em que poderia ter um quintal para os ditos índios, 3 cunhas e 2 tesouras, sendo as 2 cargas trazidas por 5 índios. Também dei, por 60 varas grandes para fazer remos, 120 cristalinos, 94 guizos e 26 anzóis. Também dei, por 90 iguanas, por 53 delas, 53 facas, por 32 delas, 16 cunhas, e pelas 5 iguanas restantes, 2 tesouras e 4 cristalinos. Também dei, por 300 cargas de raízes de mandioca para fazer pão e vinho para os índios que trabalhavam em serrar madeira para a galera, 76 cristalinos por 38 cargas. E pelas 262 cargas restantes, 262 punções e 262 anzóis. Também dei, a um homem chamado ... (em branco) Durango, que por duas vezes foi terra adentro, a 35 léguas, buscar galinhas por mandado de sua Mercê para os doentes, tanto pelas galinhas quanto pelo seu gasto e transporte, 462 punções e 200 anzóis. Também dei a Castrillo, que ia fazer carvão para a forja, 30 anzóis. Também dei, por 3 arrobas de mel que se gastaram fazendo xaropes e outras medicinas para os doentes, 10 cunhas e 21 punções. Também dei, às mulheres que às vezes faziam vinho para os índios, 20 pentes. Também dei, por palmitos para salada para a mesa de sua Mercê, 50 anzóis. Também dei a índios que iam às naus buscar pão e outras coisas requeridas pelo serviço, tanto dos doentes como outro serviço da dita armada, por ... (branco) onde se fazia a galera todo o tempo que a dita armada esteve na ilha de Santa Catarima, 200 anzóis médios e 20 punções. Também dei, por 40 cestos de inhames, tanto para o doentes como para a mesa de sua Mercê, 19 facas, 20 pentes e um espelho. Dei, por 200 punhados de milho para fazer vinho misturado com mandioca, e para dar às galinhas e patos que eram dados aos doentes, 5 maços de matamugo e 11 espelhos. Dei, por fazer a casa dos carpinteiros, 2 facas, 15 anzóis e 5 cangas. Pela casa da forja, 3 facas, e 20 anzóis pela palha. Dei, por fazer a casa onde estava a despensa de sua Mercê, 3 facas e 16 punções. Dei, por fazer uma casa para a pólvora, 8 anzóis. Dei a Martin Vizcaíno, por certas aves, as quais estavam anotadas em poder de Ponce, 30 anzóis, que esse me jurou ter gasto. Dei, por mandado de sua Mercê, por 4 índios que trouxeram Talavera, o grumete, 4 facas e 4 anzóis. Também dei a Durango, que foi buscar patos, galinhas e outras coisas à terra Dararoga, que ficará a 40 léguas da ilha de Santa Catarina, pelo que trouxe e o gasto seu, 300 anzóis médios, 16 punções e 100 anzóis pequenos de alfinete. Gastou-se, por duzentos e tantos pedaços de cera preta para misturar com o breu, 150 anzóis. De certa linha fina para calafetar a galera. De certo almagra para os carpinteiros, 2 anzóis. Também gastei, em outros gastos miúdos com os índios, tanto para trazer madeira como em outras obras que no dito tempo foram realizadas ao serviço da dita armada, 412 anzóis pequeninos de alfinete, 228 anzóis médios, não tendo anotado detalhadamente com que gastei esses anzóis por não poder fazê-lo, mais 5 maços de miçangas. Também foram gastos, na foz do rio de Solis, 62 anzóis e um espinhel, para mantimento da armada, por mandado de sua Mercê. Também se gastou, para fazer uma casa para as galinhas e outra para o açougue, 20 anzóis. Isto é o que eu, Enrique Montes, recebi do Senhor Antón de Grajeda por mandado do Senhor Miguel Rifos, lugar-tenente do Senhor Capitão General, no dia 27 de agosto de 1527. Primeiramente, recebi de Antón de Grajeda 4 machadinhas de olho pequenas, 100 anzóis pequenos e 30 grandes. Recebi do mesmo 12 cunhas e 6 facas. GASTO Primeiramente, foram gastos com 4 cestos de carne de veado seco que pesariam mais ou menos 12 quintais, 2 machadinhas de olho pequenas, 4 cunhas e 25 anzóis. Também se gastaram, por uma cesta de abati (milho) que teria uma fãnega e meia, mais ou menos, 62 anzóis daqueles que eu, Enrique Montes, fiz, e 4 canutilhos. Meio cesto de milho e feijão custaram 35 anzóis pequenos, 5 grandes e 8 cristalinos. Um grande saco de milho e uma cabaça de feijão que mandei ao senhor Grajeda nas naus custaram 6 anzóis pequenos e 4 grandes. Por 50 pescados que levaram à galera, gastaram-se 6 facas. Dei, por uma cesta de carne seca de veado, que enviei ao patrão da galera, uma cunha e 8 anzóis. Dei, por 6 peles de veado que trouxeram à obra da fortaleza, 12 anzóis. Dei a quatro índios que foram comigo buscar borazai, 4 anzóis. Dei, por certa carne seca que um índio trouxe, em que teria um grande veado, uma linha de vidrilhos. Dei, por uma canoa que comprei para que matassem carne pelo caminho, a qual se perdeu em um temporal, chegando com avaria na popa, uma machadinha de olho, uma tesoura e uma faca. Dei, por trazer o milho das casas de Recio ao rancho de sua Mercê, bem como as cestas de carne, 3 facas. Eu, Enrique, digo que estas são as contas do que recebi e gastei em Santa Catarina, no rio de Solis e em São Lázaro por mantimento e outras coisas necessárias para esta armada de Sua Majestade, por mandado do Senhor Capitão General, e por ser verdade firmo da minha mão. Feita em Sancti Spiritus, aos 30 de setembro de 1527. Enrique Montes (rubrica) Vistas as contas dos gastos em Santa Catarina apresentadas por Enrique Montes por nós, Juan de Junco, tesoureiro, Roger Barlo, contador, e Alonso de Santa Cruz, fiscal, achamos que o dito Enrique Montes entregou os veados, aves e outros mantimentos que por sua conta deu a Antonio Ponce, que foi nomeado pelo Senhor Capitão General repartidor dos ditos mantimentos em Santa Catarina, e pela conta apresentada pelo dito Antonio Ponce vimos como se gastaram os ditos mantimentos. E os outros gastos feitos pelo dito Enrique Montes com os índios para trazer a madeira do mato até a galera, fazer carvão e casas, mandar coisas para a naus e mandar buscar mantimentos terra adentro, como aparece na dita conta, foram feitos conforme indicado em sua conta. Assim, vistas as contas apresentadas por Enrique Montes do que ele recebeu e gastou em Santa Catarina e São Lázaro, achamos que se deve ao dito Enrique Montes os seguintes resgates: Primeiramente, 329 cunhas de ferro; mais, 1968 anzóis; mais, 148 facas; mais, 3 tesouras; mais, 212 canutilhos e uma linha de vidrilhos; mais, 100 guizos; mais, 878 punções, que são como sovelas. E por ser verdade que nós, Juan de Junco, tesoureiro, Roger Barlo, contador, e Alonso de Santa Cruz, fiscal, temos visto e passado as ditas contas, como consta, firmamos aqui os nossos nomes. Feito aos 30 de setembro de 1527. [Tradução do original em espanhol, Relación de lo recebido y pagado por Enrique Montes en la isla de Santa Catarina, de 1527, para o português de Jean François Cleaver.] |
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| Em 1612, o capuchinho francês Claude dAbbeville chegou ao Maranhão como membro da missão religiosa que acompanhava a expedição de La Ravardière. Após retornar à França, publicou em 1614 a História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão, na qual relatou sua experiência de quatro meses no Brasil. Desta obra foi extraído o texto seguinte, sobre a nudez dos índios tupinambás e a maneira como se adornavam. Não há nação, por mais bárbara que seja, que não tenha procurado, em dado momento, cobrir o corpo com vestimentas ou enfeites, a fim de esconder a nudez. Pois os tupinambás, por mais estranho que pareça, andam sempre nus como ao saírem do ventre materno; e não demonstram em absoluto a menor vergonha ou pudor. Segundo as Escrituras, logo que os nossos primeiros pais comeram o fruto proibido, abriram-se os seus olhos e eles perceberam que estavam nus e lançaram mão de folhas de figueira para cobrir a nudez de que se pejavam. Como se explica que os tupinambás, compartilhando a culpa de Adão e sendo herdeiros de seu pecado, não tenham herdado também a vergonha, conseqüência do pecado, como ocorreu com todas as nações do mundo? Pode-se alegar, em sua defesa, que em virtude de ser velho costume seu viverem nus, já não sentem pudor ou vergonha de mostrar o corpo descoberto e o mostram com a mesma naturalidade que nós as mãos. Eu direi entretanto que nossos pais só sentiram a vergonha e ocultaram sua nudez quando abriram os olhos, isto é, quando tiveram conhecimento do pecado e perceberam que estavam despidos do belo manto da justiça original. A vergonha provém, com efeito, da consciência da malícia do vício ou do pecado, e esta resulta do conhecimento da lei. Peccatum non cognovi, diz s. Paulo, nisi per legem. Como os maranhenses jamais tiveram conhecimento da lei, não podiam ter, tampouco, consciência da malícia do vício e do pecado; continuam com os olhos fechados em meio às mais profundas trevas do paganismo. Donde não terem vergonha de andar nus, sem nenhuma espécie de vestimenta para esconder a nudez. Pensam muitos ser coisa detestável ver esse povo nu, e perigoso viver entre as índias, porquanto a nudez das mulheres e raparigas não pode deixar de constituir um objeto de atração, capaz de jogar quem as contempla no precipício do pecado. Em verdade, tal costume é horrível, desonesto e brutal, porém o perigo é mais aparente do que real, e bem menos perigoso é ver a nudez das índias que os atrativos lúbricos das mundanas de França. São as índias tão modestas e discretas em sua nudez, que nelas não se notam movimentos, gestos, palavras, atos ou coisa alguma ofensivos ao olhar de quem as observa; ademais, muito ciosas da honestidade no casamento, nada fazem em público suscetível de causar escândalo. Se tivermos ainda em conta a deformidade habitual, até certo ponto repugnante, concluiremos que essa nudez não é em si atraente, ao contrário dos requebros, lubricidades e invenções das mulheres de nossa terra, que dão origem ao maior número de pecados mortais e arruínam mais almas do que as índias com sua nudez brutal e desprezível. Índios e índias tornam-se tanto mais horríveis, quanto mais pintam o rosto e o corpo, na convicção de se embelezarem. Trazem alguns a face rajada de vermelho e negro; outros pintam apenas uma metade do corpo e do rosto e deixam a outra metade com sua cor natural. Outros cobrem o corpo inteiro de figuras, da cabeça aos joelhos, e assim ficam como se estivessem vestidos com uma roupa de Pantalon, de cetim preto estampado. Quanto às mãos e às pernas, pintam-nas com o suco do jenipapo. Nem sempre entretanto andam pintados; assim o fazem quando querem. E são as raparigas que mais comumente o fazem, comprazendo-se em se pintar e enfeitar o corpo segundo sua fantasia. Nem sempre, tampouco, se pintam a si próprios; enfeitam-se e pintam-se uns aos outros. As raparigas, mais destras, é que se encarregam o mais das vezes de fazê-lo. E embora jamais tenham aprendido a pintar, são em verdade admiráveis os desenhos que fazem nos corpos. Vê-se muitas vezes um rapaz de pé, com as mãos nas ancas e a seu lado uma rapariga ajoelhada ou de cócoras, com uma cuia, ou cabaça, feita da metade de um fruto, na qual se coloca a tinta. Munida de um pequeno talo de pindó à guisa de pincel, cobre o corpo do rapaz com riscos retos como se fossem feitos com régua; e procede tão habilmente quanto o faria um pintor. Também se encontram mulheres segurando um espelho com a mão esquerda e com a outra manejando a pindó, e se pintando sozinhas o rosto com o mesmo embevecimento das nossas mulheres nas suas pinturas. Riscam com jenipapo as sobrancelhas, previamente arrancadas, e assim passam grande parte de sua existência, muito satisfeitas com tal mister. Os maiores e mais valentes guerreiros, para se tornarem mais estimados pelos seus companheiros e temidos de seus inimigos, têm por hábito picar e tatuar figuras no corpo (assim como fazemos em nossas couraças) por meio de um pedaço do osso da canela de certos pássaros, que afiam como navalhas. Mostram-se extremamente corajosos, pois logo esfregam as incisões com tinta preta em pó, ou feita de suco de plantas, a qual se mistura ao sangue e se introduz nas cicatrizes, tornando indeléveis as figuras tatuadas. Entre os seis índios que trouxemos para a França, havia um tabajara assim tatuado desde as sobrancelhas até os joelhos mais ou menos. Quando os homens da terra desejam mostrar-se elegantes, como nos dias de cauinagem, de matança dos prisioneiros ou escravos, de perfuração dos lábios de seus filhos, de partida para a guerra ou de outras solenidades, enfeitam-se com penas e outros adornos feitos de penas vermelhas, azuis, verdes, amarelas e de diversas cores vivas que sabem admiravelmente combinar. Misturam-nas a seu bel-prazer de modo a que as cores se valorizem mutuamente; arranjam-nas então e as ordenam artisticamente, prendendo-as umas às outras com um fio de algodão bem grosso, tecido, por dentro, à maneira de redes de pescar de malhas bem pequenas. Por fora, entretanto, todas essas belas e ricas penas se misturam e se arrumam com gosto, a ponto de causar admiração. Fazem assim barretes a que dão o nome de acangaop ou acã açoiave e que usam nas solenidades. Outros, em vez desses barretes, enfeitam a cabeça com as pequeninas plumas do papo das araras, dos canindés, dos papagaios e outros pássaros. Acertam-nas habilmente em sua cabeleira, com um pouco de cera ou de resina, e assim parecem ter a cabeça coberta com um barrete redondo e multicor. Só tiram essas plumas quando cortam os cabelos. Reúnem-nas então, e as acomodam do melhor modo possível em torno de uma vareta, para lavá-las mais facilmente e tirar-lhes a gordura com aquele sabão a que já me referi. Depois de secas, guardam-nas tão cuidadosamente quanto as senhoras as jóias mais preciosas, a fim de as utilizar oportunamente. Confeccionam da mesma forma seus frontais, a que chamam acangetar e que usam como diademas. E, em lugar de gola, andam com um colar de plumas, tecido como já disse, e a que denominam ajuacará. Tudo isso é admirável, porém nada em comparação com seus mantos a quem chamam acoiave; são tecidos com as mais belas penas e descem até o meio das coxas e às vezes até os joelhos. Usam-nos de quando em quando, não porque tenham vergonha da nudez, mas por prazer; não para esconder o corpo, mas sim como adorno, e para se mostrarem mais belos em seus festins e solenidades. Usam também uma espécie de liga que denominam tabacurá. É feita com fio de algodão maravilhosamente bem tecido e tão unido que parece de uma só peça. Tem forma de cordão ou de anel e mais ou menos dois dedos de comprimento. É enfeitada com belas penas de diversas cores. Põem-na em torno da perna no lugar em que se usa a liga, e para que se veja melhor usam duas, uma sobre a outra, deixando um pequeno espaço entre elas, o que faz com que pareçam um duplo cordão bem enfeitado. As moças usam comumente semelhantes ligas, porém sem penas, feitas exclusivamente de fios de algodão. Existe ainda outra espécie de ligas chamadas auai. São feitas como as precedentes, porém mais largas, e, em vez de penas, com fios de algodão retorcido, de um dedo de comprimento, ligando certos frutos do tamanho de nozes, de casca muito dura quando sêca. Costumam esvaziar esses frutos de seu conteúdo e enchê-los com pequenas pedras, ou ervilhas duras, de modo que assim se tornam barulhentos quando os índios dançam. Fazem também braceletes a que chamam mapuí-cuai-chuare. São feitos com fios de algodão em torno do qual se colocam longas penas tiradas da cauda das araras. Costumam usar esses braceletes, em suas festas, um pouco acima do cotovelo, do mesmo modo que os cortesãos usam os presentes ou as armas de suas damas. Possuem também grandes penachos em forma de ramalhetes, feitos com as maiores penas do avestruz e de outros pássaros; usam-nos apensos ao traseiro, pendurados numa cinta fixada em torno dos rins ou nas espáduas por meio de um cordão a tiracolo. Dão a esses penachos o nome de iandu-ave. Encontram-se nas praias muitas conchas ou caramujos que quebram em pedacinhos e pulem, com pedras duras, muito habilidosamente, em círculo ou em quadrado ou mesmo em quadriláteros proporcionais uns aos outros. Furam os quadrados nos quatro ângulos e os amarram com um fio de algodão finíssimo à moda dos nossos joalheiros e ourives; ou os colam sobre uma rede com resina, e fabricam cintas e braceletes muito bonitos a que chamam mino. É admirável vê-los polir e furar esses pedaços de conchas com a destreza que lhes é peculiar. Trabalham tão bem que suas cintas e seus braceletes parecem de madrepérola. Com os pedaços redondos procedem de outro modo. Furam-nos no centro, enfiam-nos à maneira de rosários, para que as mulheres os usem ao pescoço e nos braços, em lugar dos colares ou braceletes de plumas. Assim fazem as damas francesas com as suas pérolas. Algumas índias usam tantos colares em torno do pescoço, que cobrem inteiramente o peito. Essas jóias são as mais preciosas; delas se servem como adorno e lhes dão o nome de boíre. Também se enfeitam com rosários de contas de diversas cores, que muito apreciam, e que recebem dos franceses em troca de outras mercadorias. Para enfeitar os filhos apanham caramujos, pulem-nos nas pedras, como já disse, e fazem pequenos braceletes a que chamam de nhaã, tão brancos e polidos como o marfim. Enrolam algumas vezes de três a quatro nos braços das crianças, ou em torno do pescoço como colares. Esses são os mais belos adornos e enfeites dos índios tupinambás. Usam-nos, entretanto, somente como ornamentos, pois tanto homens como mulheres e crianças têm por hábito andar inteiramente nus. Alguns, porém, usam atualmente roupas que os franceses lhes dão em troca de gêneros. É cômico vê-los assim vestidos, porquanto alguns usam apenas um chapéu, outros uma ceroula sem gibão nem barrete; outros apenas uma jaqueta até a cintura, como se fosse uma saia. Alguns ainda usam apenas a camisa e nada mais; mas existem alguns que se vestem completamente, se lhes dá na telha, o que não dura, porém, muito tempo, quando muito meio dia ou um dia inteiro. No dia seguinte, tudo abandonam e se põem nus. É verdade que todos os homens casados, e principalmente os velhos, costumam em geral cobrir suas vergonhas com pedaços de pano vermelho ou azul, que prendem ao redor da cintura por um fio de algodão; o resto do pano cai-lhes até os joelhos ou o meio da perna, sendo tanto mais belos quanto mais baixo alcançam. Denominam essa espécie de adorno carajuve. Meninos e solteiros não o usam de modo nenhum. Somente os adolescentes se contentam com amarrar o prepúcio com um fio de algodão ou uma pequena folha de pindó. [Extraído de Claude dAbeville. História da Missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. 1a ed., 1614. Tradução de Sérgio Milliet. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1975, pp. 216-21.] |
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| O senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa dedicou boa parte de seu livro Tratado descritivo do Brasil, de 1587, à descrição dos costumes indígenas, sobretudo dos índios tupinambás, que habitavam quase todo o litoral brasileiro. Neste trecho, ele se detém sobre os costumes sexuais e as normas relativas ao casamento entre os índios. Que trata da maneira dos casamentos dos tupinambás e seus amores A mulher verdadeira dos tupinambás é a primeira que o homem teve e conversou, e não tem em seus casamentos outra cerimônia mais que dar o pai a filha a seu genro, e como tem ajuntamento natural, ficam casados: e os índios principais têm mais de uma mulher, e o que mais mulheres tem, se tem por mais honrado e estimado; mas elas dão todas obediência à mais antiga, e todas a servem, a qual tem armada sua rede junto da do marido, e entre uma e outra tem sempre fogo aceso; e as outras mulheres têm as suas redes, em que dormem, mas afastadas, e fogo entre cada duas redes; e quando o marido se quer ajuntar com qualquer delas, vai-se lançar com ela na rede, onde se detêm só aquele espaço deste contentamento, e torna-se para o seu lugar; e sempre há entre estas mulheres ciúmes, mormente a mulher primeira; porque pela maior parte são mais velhas que as outras, e de menos gentileza, o qual ajuntamento é público diante de todos. E quando o principal não é o maior da aldeia dos índios das outras casas, o que tem mais filhas é mais rico e mais estimado, e mais honrado de todos, porque são as filhas mui requestadas dos mancebos que namoram; os quais servem os pais das damas dois e três anos primeiro que lhas dêem por mulheres; e não as dão senão aos que melhor os servem, a quem os namorados fazem a roça, e vão pescar e caçar para os sogros, que desejam de ter, e lhe trazem a lenha do mato; e como os sogros lhes entregam as damas, eles se vão agasalhar no lanço dos sogros com as mulheres, e apartam-se dos pais, mães e irmãos, e mais parentela com que dantes estavam; e por nenhum caso se entrega a dama a seu marido enquanto lhe não vem seu costume; e como lhe vem é obrigada a moça a trazer atado pela cinta um fio de algodão, e em cada bucho dos braços outro, para que venha à notícia de todos. E como o marido lhe leva a flor, é obrigada a noiva a quebrar estes fios, para que seja notório que é feita dona; e ainda que uma moça destas seja deflorada por quem não seja seu marido, ainda que seja em segredo, há de romper os fios da sua virgindade, que de outra maneira cuidará que a leva logo o diabo, os quais desastres lhes acontecem muitas vezes; mas o pai não se enoja por isso; porque não falta quem lha peça por mulher com essa falta; e se algum principal da aldeia pede a outro índio a filha por mulher, o pai lha dá sendo menina; e aqui se não entende o preceito acima, porque ele a leva para o seu lanço, e a vai criando até que lhe venha seu costume, e antes disso por nenhum caso lhe toca. (...) Que trata da luxúria destes bárbaros São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam; os quais sendo de muito pouca idade têm conta com mulheres, e bem mulheres; porque as velhas, já desestimadas dos que são homens, granjeiam estes meninos, fazendo-lhes mimos e regalos, e ensinam-lhes a fazer o que eles não sabem, e não os deixam de dia, nem de noite. É este gentio tão luxurioso que poucas vezes tem respeito às irmãs e tias, e porque este pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas; e não se contentam com uma mulher, mas têm muitas, como já fica dito, pelo que morrem muitos de esfalfados. E em conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem cada hora; os quais são tão amigos da carne que se não contentam, para seguirem seus apetites, com o membro genital como a natureza o formou; mas há muitos que lhe costumam pôr o pêlo de um bicho tão peçonhento, que lho faz logo inchar, com o que têm grandes dores, mais de seis meses, que se lhe vão gastando por espaço de tempo; com o que se lhe faz o seu cano tão disforme de grosso que os não podem as mulheres esperar, nem sofrer; e não contentes estes selvagens de andarem tão encarniçados neste pecado, naturalmente cometido, são mui afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas. Como os pais e as mães vêem os filhos com meneios para conhecer mulher, eles lhas buscam, e os ensinam como a saberão servir; as fêmeas muito meninas esperam o macho, mormente as que vivem entre os portugueses. Os machos destes tupinambás não são ciosos; e ainda que achem outrem com as mulheres, não matam a ninguém por isso, e quando muito espancam as mulheres pelo caso. E as que querem bem aos maridos, para os contentarem, buscam-lhes moças com que eles se desenfadem, as quais lhe levam à rede onde dormem, onde lhe pedem muito que se queira deitar com os maridos, e as peitam para isso; coisa que não faz nenhuma nação de gente, senão estes bárbaros. Que trata das cerimônias que usam os tupinambás nos seus parentescos Costumam os tupinambás que quando alguém morre que é casado, é obrigado o irmão mais velho a casar com sua mulher, e quando não tem irmão, o parente mais chegado pela parte masculina; e o irmão da viúva é obrigado a casar com sua filha se a tem; e quando a mãe da moça não tem irmão, pertence-lhe por marido o parente mais chegado da parte de sua mãe; e se não quer casar com esta sua sobrinha, não tolherá a ninguém dormir com ela, e depois lhe dá o marido que lhe vem à vontade. O tio, irmão do pai da moça, não casa com a sobrinha, nem lhe toca quando fazem o que devem, mas tem-na em lugar de filha, e ela como a pai que lhe obedece, depois da morte do pai, e pai lhe chama; e quando estas moças não têm tio, irmão de seu pai, tomam em seu lugar o parente mais chegado; e a todos os parentes da parte do pai em todo o grau chamam pai, e eles a ela filha; mas ela obedece ao mais chegado parente, sempre; e da mesma maneira chamam os netos ao irmão e primo de seu avô, avô, e eles a eles netos, e aos filhos dos netos, e netas de seus irmãos e primos; e da parte da mãe também os irmãos e primos delas chamam aos sobrinhos filhos, e eles aos tios pais; mas não lhe têm tamanho acatamento como aos tios da parte do pai; e preza-se este gentio de seus parentes, e o que mais parentes e parentas tem, é mais honrado e temido, e trabalha muito pelos chegar para si, e fazer corpo com eles em qualquer parte em que vivem; e quando qualquer índio aparentado tem agasalhado seus parentes em sua casa e lanço, quando há de comer, deita-se na sua rede, onde lhe põem o que há de comer em uma vasilha; e assentam-se em cócoras, suas mulheres e filhos, e todos os seus parentes, grandes e pequenos; e todos comem juntos do que tem na vasilha, que está no meio de todos. [Extraído de Gabriel Soares de Souza, Tratado descritivo do Brasil em 1587. 5a ed., São Paulo/Brasília: Cia. Ed. Nacional/INL, 1987, pp. 304-10.] |
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| Concessão a Martim Afonso de Sousa Em 1530, Martim Afonso de Sousa comandou a primeira grande expedição colonizadora oficialmente enviada ao Brasil pela coroa portuguesa. Na carta abaixo, datada de 20 de novembro de 1530, d. João III, rei de Portugal, confere-lhe jurisdição sobre os tripulantes da armada e sobre todos os habitantes da Colônia. Carta de Grandes Poderes ao capitão-mor, e a quem ficasse em seu lugar D. João & A quantos esta minha carta de poder virem faço saber que eu a envio ora a Martim Afonso de Sousa do meu conselho por capitão-mor da armada que envio à terra do Brasil e assim de todas as terras que ele dito Martim Afonso na dita terra achar e descobrir, e, porém, mando aos capitães da dita armada, e fidalgos, cavaleiros, escudeiros, gente de armas, pilotos, mestres, mareantes e todas as outras pessoas, e a quaisquer outras de qualquer qualidade que sejam, nas ditas terras que ele descobrir ficarem e nela estiverem ou a ela forem ter por qualquer maneira que seja, que haja ao dito Martim Afonso de Sousa por capitão-mor da dita armada e terras e lhe obedeçam em tudo e por tudo o que lhes mandar e cumpram e guardem seus mandados assim e tão inteiramente como se por mim em pessoa fosse mandado, sob as penas que ele puser; as quais com efeito dará a devida execução nos corpos e fazendas daqueles que o não quiserem cumprir, assim, e além disso lhe dou todo poder e alçada, mero e misto império, assim no crime como no cível sobre todas as pessoas assim da dita armada como em todas as outras que nas ditas terras que ele descobrir viverem e nela estiverem ou a ela forem ter por qualquer maneira que seja, e ele determinará seus casos feitos assim crimes como cíveis e dará neles aquelas sentenças que lhe parecer justiça conforme a direito e minhas ordenações até morte natural inclusive, sem de suas sentenças dar apelação nem agravo, que para tudo o que é dito é e tocar a dita jurisdição lhe dou todo poder e alçada na maneira sobredita, porém se alguns fidalgos que na dita armada forem e na dita terra estiverem ou viverem e a ela forem cometer alguns casos-crimes por onde mereçam ser presos ou emprazados ele dito Martim Afonso os poderá mandar prender ou emprazar segundo a qualidade de suas culpas o merecer e mos enviará com os autos das ditas culpas para cá se verem e determinarem como for justiça, porque nos ditos fidalgos no que tocar nos casos-crimes hei por bem que ele não tenha a dita alçada; e bem assim dou poder ao dito Martim Afonso de Sousa para que em todas as terras que forem de minha conquista e demarcação que ele achar e descobrir possa meter padrões e em meu nome tome delas Real e autoral e tirar estormentos, e fazer todos os outros autos isso lhe dou especial e todo cumprido poder, como para todo ser firme e valioso requerem e se para mais firmeza de cada uma das necessárias de feito ou de direito nesta minha carta de poder irem declaradas alguma cláusulas mais especiais e exuberantes eu as hei assim por expressas e declaradas como se especialmente o fossem posto que sejam tais e de tal qualidade que de cada uma delas fossem necessário se fazer expressa menção e porque assim me de todo apraz, mandei disso passar esta minha carta ao dito Martim Afonso assinada por mim e selada do meu selo pendente, dada em a Vila de Castro Verde aos XX (20) dias do mês de novembro. Fernão da Costa a fez, ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil bcxxx (1530) anos e eu André Piz a fiz escrever e sobrescrevi; e se o dito Martim Afonso em pessoa for, algumas partes ele deixará nas ditas terras que assim descobrir por capitão-mor e governador em seu nome a pessoa que lhe parecer que o melhor fará ao qual deixará por seu assinado os poderes de que há de usar que serão todos ou aquela parte destes nesta minha carta declaradas que ele obedecido como ao dito Martim Afonso sob as penas que nos ditos poderes que lhe assim deixar forem declaradas; e no que toca a emprezamento dos fidalgos que em cima é declarado por alguns justos respeitos hei por bem que o dito Martim Afonso os não empraze e quando fizerem tais casos por onde mereçam pena alguma crime ele prenderá e mos enviará presos com os autos de suas culpas para se nisso fazer o que for justiça. Carta de Poder para o capitão-mor criar tabeliães e mais oficiais de justiça Dom João & A quantos esta minha carta virem faço saber que eu envio ora a Martim Afonso de Sousa do meu conselho por capitão-mor da armada que envio à terra do Brasil e assim das terras que ele na dita terra achar e descobrir; e porque assim para que tomar a posse delas como para as coisas da Justiça e governança da terra serem ministradas como devem, será necessário criar e fazer de novo alguns oficiais assim tabeliães como quaisquer outros que vir que para isso forem necessários, por esta minha carta de poder ao dito Martim Afonso para que ele possa criar e fazer dois tabeliães que sirvam das notas e judicial, que logo com ele daqui vão na dita armada, os quais serão tais pessoas que o bem saibam fazer o que para isso sejam aptos aos quais dará suas cartas com o traslado desta minha para mais firmeza, e estes tabeliães que assim fizer deixarão seus sinais públicos que houverem de fazer na minha chancelaria, e se depois que ele dito Martim Afonso for dita terra lhe parecer que para governança dela são necessários mais tabeliães que os sobreditos que assim daqui há de levar isso mesmo lhe dou poder para os criar e fazer de novo, e para quando vagarem assim uns como os outros ele prover dos ditos ofícios as pessoas que vir que para isso são aptas e pertencentes; e bem assim lhe dou poder para que possa criar e fazer de novo e prover por falecimento dos quais os ofícios da justiça e governança da terra que por mim não forem providas que vir que são necessários, e os que assim por ele criados e providos forem hei por bem que tenham e possuam e sirvam os ditos ofícios como se por mim, por minhas provisões, os fossem e porque assim me disso apraz lhe dei esta minha carta de poder ao dito Martim Afonso por mim assinada e selada com o meu selo para mais firmeza, dada em Vila de Castro Verde a XX (20) dias de novembro. Fernão da Costa a fez, ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil bcxxx (1530) anos. E eu André Piz a fiz escrever e sobrescrevi. Carta para o capitão-mor dar terras de sesmaria Dom João & A quantos esta minha carta virem faço saber para que as terras que Martim Afonso de Sousa do meu conselho descobrir na terra do Brasil onde o envio por meu capitão-mor se possam aproveitar, eu por esta minha carta lhe dou poder para que ele dito Martim Afonso possa dar às pessoas que consigo levar, às que na dita terra quiserem viver e povoar, aquela parte das terras que assim achar e descobrir que lhe bem parecer e segundo o merecerem as ditas pessoas por seus serviços e qualidades para as aproveitarem; e as terras que assim der será somente nas vidas daqueles a que as der e mais não e as terras que lhe parecer bem poderá para si tomar porém tanto até me fazer saber e aproveitar e granjear no melhor modo que ele puder e vir que é necessário para bem das ditas terras; e das que assim der às ditas pessoas lhes passará suas cartas declarando nelas como ilhas dá em suas vidas somente e que de dentro em seis anos do dia da dita data cada um aproveitar a sua e se no dito tempo assim o não fizer as poderá tornar a dar com as mesmas condições a outras pessoas que as aproveitem e nas ditas cartas que lhes assim der irá trasladada esta minha carta de poder para se saber a todo tempo como o fez por meu mandado e lhe ser inteiramente guardada a quem a tiver; e o dito Martim Afonso me fará saber as terras que achou para poderem ser aproveitadas e a quem as deu e quanta quantidade a cada um e as tomou para si e a disposição delas para o eu ver e mandar nisso o que me bem parecer e porque assim me apraz lhe mandei dar esta minha carta por mim assinada e selada com o selo pendente, dada em a Vila de Castro Verde a XX (20) dia do mês de novembro. Fernão da Costa a fez, ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo mil bcxxx (1530) anos. [Extraído da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 24 (1° trimestre), 1861, pp. 74-79, apud Darcy Ribeiro & Carlos de Araujo Moreira Neto (orgs.). A fundação do Brasil: Testemunhos, 1500-1700. Petrópolis: Vozes, 1992, pp.136-8.] |
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| O alemão Hans Staden esteve duas vezes no Brasil como mercenário, combatendo franceses e seus aliados indígenas, primeiro em Pernambuco e depois no litoral de São Paulo. Em Bertioga, ficou meses aprisionado pelos tamoios, antes de ser libertado por um comerciante francês. De volta à Europa, escreveu um livro descrevendo detalhadamente o mundo indígena. Veremos agora um trecho deste livro, editado pela primeira vez na Alemanha em 1557, no qual descreve os preparativos que os índios faziam para guerrear. Quando pretendem empreender uma excursão guerreira em terra dos seus inimigos, reúnem-se os seus principais e deliberam como se deve agir, dando-o a conhecer aos homens, em todas as choças, para que se aprestem, e citam então uma qualidade de frutos arbóreos: quando estes estiverem maduros, pretendem partir, pois não sabem determinar ano e dia. Fixam também às vezes o tempo de partida no qual desova uma espécie de peixe, que chamam pirati em sua língua. À época da desova chamam piracema. Para este prazo arranjam canoa, flechas e farinha grossa de raízes, à qual denominam uiatã e utilizam como alimento. Depois disto consultam os pajés, os adivinhos, se de fato vencerão. Estes dizem naturalmente que sim, ordenando-lhes porém que atentem aos sonhos que tiverem com os inimigos. Quando a maioria sonha que vê assar a carne do seu inimigo, significaria isto a vitória. Quando, entretanto, virem assar a sua própria carne, isto nada de bom prognostica, e neste caso deveriam permanecer em casa. Quando então os sonhos lhes agradam, armam-se, preparam em todas as choças grandes festins, bebem e dançam com os seus ídolos, os maracás, e cada um pede à sua matraca que o ajude a capturar um inimigo. Partem após. Quando chegam às vizinhanças da terra dos seus inimigos, ordenam-lhes então os principais, na noite da véspera do ataque ao campo adversário, que prestem atenção aos sonhos que tiverem nessa noite. Tomei parte com eles numa excursão guerreira. Quando havíamos chegado à terra inimiga, foi o principal, na noite de véspera àquela em que queriam atacá-la, a todo acampamento, dizendo aos guerreiros que deviam atentar bem aos sonhos que lhes viessem nessa noite. Ordenou além disso aos jovens que, pela madrugada, caçassem e pescassem. Assim se fez, e o principal mandou preparar o que caçaram. Chamou após os outros principais em frente da sua cabana. Sentaram-se todos em círculo no chão. Fez-lhes dar de comer. Depois que comeram, relataram seus sonhos, e havia muitos destes que os agradaram bastante. A seguir dançaram de alegria com os maracás. Na noite seguinte vão espreitar as choças dos seus inimigos. O ataque sempre tem lugar de madrugada, quando o dia desponta. Se capturam alguém que está gravemente ferido, matam-no logo e carregam consigo sua carne assada para casa. Os que não estão feridos, ou o estão levemente, trazem-nos vivos e matam-nos em suas aldeias. Assaltam, sob grande gritaria, batendo os pés ao solo e soprando em instrumentos que fazem de cabaças. Todos envolvem em si cordas para amarrar os inimigos. Enfeitam-se com penas vermelhas como sinal identificador frente aos contrários. Atiram com rapidez e empregam também flechas ardentes contra as choças dos adversários para atear-lhes fogo. Quando um dos seus é ferido, utilizam ervas especiais para a cura. [...] Quando trazem para casa um inimigo, batem-lhes as mulheres e as crianças primeiro. A seguir, colam-lhe ao corpo penas cinzentas, raspam-lhes as sobrancelhas, dançam-lhe em torno e amarram-no bem, a fim de que não lhes possa escapar. Dão-lhe então uma mulher, que dele cuida, servindo-o também. Se tem dele um filho, criam-no até grande, matam-no e o comem quando lhes vem à cabeça. Dão de comer bem ao prisioneiro. Conservam-no por algum tempo e então se preparam. Para tanto fabricam muitas vasilhas, nas quais põem suas bebidas e queimam também vasilhame especial para os ingredientes com que o pintam e enfeitam. Além disso fazem borlas de penas, que amarram ao tacape com que o matam. Fabricam também uma longa corda, chamada mussurana. Com esta o amarram, antes de executá-lo. Assim que tudo está preparado, determinam o tempo em que deve morrer o prisioneiro e convidam os selvagens de outras aldeias para que venham assistir. Enchem então de bebidas todas as vasilhas. Um ou dois dias antes de as mulheres fabricarem as bebidas, conduzem o prisioneiro uma ou duas vezes ao pátio dentre as cabanas e dançam-lhe em volta. Logo que estão reunidos todos os que vieram de fora, dá-lhes as boas-vindas o principal da choça e diz: "Vinde agora e ajudai a comer o vosso inimigo". No dia, véspera de começarem a beber, amarram a mussurana em torno ao pescoço do prisioneiro e pintam o ibirapema com que pretendem matar. [...] Tem mais de uma braça de longo. Os selvagens a untam com uma substância grudenta. Tomam então cascas de ovo dum pássaro, o macaguá, que são cinzentas, reduzem-nas a pó, e espalham isto sobre o tacape. Depois se assenta uma mulher e garatuja nesta poeira de cascas de ovo, que está grudada. Enquanto ela desenha, rodeiam-na, cantando, muitas mulheres. Estando o ibirapema como deve, ornado com borlas de penas e outros enfeites, será pendurado acima do chão, numa vara, numa choça vazia. Os selvagens cantam então, através da noite toda, em volta desta choça. Do mesmo modo pintam o rosto do prisioneiro, e enquanto uma mulher o pinta, cantam as outras. Quando principiam a beber, levam consigo o prisioneiro, que bebe com eles, e com o qual se divertem. Acabada a bebida, descansam no outro dia e constróem para o prisioneiro uma pequena cabana no local em que deve morrer. Aí ele passa a noite sendo bem vigiado. Pela manhã, bem antes do alvorecer, vêm eles, dançam e cantam em redor do tacape com que querem o executar, até que o dia rompa. Tiram então o prisioneiro para fora da pequena choça e derrubam-na, fazendo um espaço limpo. Em seguida desatam-lhe a mussurana do pescoço, passam-lha em volta do corpo retesando-a de ambos os lados. Fica ele então no meio, bem amarrado. Muita gente segura a corda nas duas extremidades. Assim o deixam ficar algum tempo e põem-lhe perto pequenas pedras para que possa lançá-las nas mulheres, que lhe correm em redor, mostrando-lhe com ameaças como o pretendem comer. As mulheres estão pintadas e têm o encargo, quando for ele cortado, de correr em volta das cabanas com os primeiros quatro pedaços. Nisso encontram prazer os demais. Fazem então uma fogueira, a dois passos mais ou menos do escravo, de sorte que este necessariamente a vê, e uma mulher se aproxima correndo com a maça, o ibirapema, ergue ao alto as borlas de pena, dá gritos de alegria e passa correndo em frente do prisioneiro a fim de que ele o veja. Depois um homem toma o tacape, coloca-se com ele em frente do prisioneiro, empunhando-o, para que o aviste. Entrementes, afasta-se aquele que o vai matar, com outros treze ou quatorze, e pintam os corpos de cor plúmbea, com cinza. Quando retorna ao prisioneiro, com os seus companheiros, para o pátio, entrega-lhe o tacape aquele com que ele se acha em pé, em frente ao capturado; vem então o principal da cabana, toma a arma e mete-lha entre as pernas. Consideram isto uma honra. A seguir retoma o tacape aquele que vai matar o prisioneiro e diz: "Sim, aqui estou eu, quero matar-te, pois tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos". Responde-lhe o prisioneiro: "Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me". Depois golpeia o prisioneiro na nuca, de modo que lhe saltam os miolos, e imediatamente levam as mulheres o morto, arrastam-no para o fogo, raspam-lhe toda a pele, fazendo-o inteiramente branco, e tapando-lhe o ânus com um pau, a fim de que nada dele se escape. Depois de esfolado, toma-o um homem e corta-lhe as pernas, acima dos joelhos, e os braços junto ao corpo. Vêm então as quatro mulheres, apanham os quatro pedaços, correm com eles em torno das cabanas, fazendo grande alarido, em sinal de alegria. Separam após as costas, com as nádegas, da parte dianteira. Repartem isto entre si. As vísceras são dadas às mulheres. Fervem-nas e com o caldo fazem uma papa rala, que se chama mingau, que elas e as crianças sorvem. Comem essas vísceras, assim como a carne da cabeça. O miolo do crânio, a língua e tudo o que podem aproveitar, comem as crianças. Quando o todo foi partilhado, voltam para casa, levando cada um o seu quinhão. Quem matou o prisioneiro recebe ainda uma alcunha, e o principal da choça arranha-lhe os braços, em cima, com o dente de um animal selvagem. Quando esta arranhadura sara, vêm-se as cicatrizes, que valem por ornato honroso. Durante esse dia, deve o carrasco permanecer numa rede, em repouso. Dão-lhe um pequeno arco, com uma flecha, com que deve passar o tempo, atirando num alvo de cera. Assim procedem para que seus braços não percam a pontaria, com a impressão da matança. Tudo isso vi, e assisti. (...) [Extraído de Hans Staden, Duas viagens ao Brasil. 1a ed., 1557. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974, pp. 176-8, apud Darcy Ribeiro & Carlos de Araujo Moreira Neto (orgs.). A fundação do Brasil: Testemunhos, 1500-1700. Petrópolis: Vozes, 1992, pp.171-2.] |
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