Carta de Pero Vaz de Caminha

Escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha redigiu esta carta ao rei d. Manuel para comunicar-lhe o descobrimento das novas terras. Datada de Porto Seguro, no dia 1º de maio de 1500, foi levada a Lisboa por Gaspar de Lemos, comandante do navio de mantimentos da frota; é o primeiro documento escrito da nossa história.

Senhor: Posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães, escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, o melhor que eu puder, ainda que, para o bem contar e falar, o saiba fazer pior que todos. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para alindar nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi, segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e as nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária, onde andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito Pero Escolar, piloto. Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais. E assim seguimos nosso caminho por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram vinte e um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome, o Monte Pascoal, e à terra, a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e, ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, quatorze, treze, doze, dez e nove braças, até a meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos. Dali avistamos homens que andavam pala praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes; e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde falaram entre si. E o capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar. Na noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitania. E sexta pela manhã, às oito horas pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertamos. Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, achassem pouso seguro para as naus, que amainassem. E, velejando nós pela costa, acharam os ditos navios pequenos, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças. E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. O capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiverem medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiserem comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora. Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhes dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhe dera. Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram. Ao sábado pela manhã mandou o capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças — ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do capitão-mor. E daqui mandou o capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperava um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos; enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar. Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais. Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então não houve mais fala nem entendimento com eles, por a berberia deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tirar coisa alguma, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da primeira vez o agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo. Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós. E com isto tornamos e eles foram-se. À tarde saiu o capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu — ele com todos nós — em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite. Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e a dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três que aí tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, voltou o capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não. Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim que parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e ameijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau; por ordem do capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem. E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados. Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estes outros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que portanto não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degregados, quando daqui partíssemos. E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam. Então o capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas. Então tornou-se o capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim. Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma. Também andava aí outra mulher moça, com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum. Depois andou o capitão para cima ao longo do rio, que ocorre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas coisas lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia. Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza. Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado. Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima. E então o capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia. Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar. O capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém. Os outros dois, que o capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram — do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser. Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas. Mandou o capitão àquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes — disse ele — que um lhe tomara umas continhas amarelas que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Doiro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir. À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, segundo creio, o capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza. E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam. Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos. E o capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite. Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitania. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro. Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde, fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus. À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer. Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande cruz, dum pau que ontem para isso se cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, muito bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. O capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e a outras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves! Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha. Eu, creio, senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que — eu creio — o capitão a ela há de enviar. À quarta-feira não fomos em terra, porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite. E assim não houve mais este dia que para escrever seja. À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram muito bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz. Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem. Acabado de comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, e meteu-a logo no beiço, e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade. Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanto podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles. Foi o capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água. Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homem as não pode contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos. Quando saímos do batel, disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar de sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim. Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus. Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o capitão-mor, dois; Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem. Um dos que o capitão trouxe era um dos hóspedes que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar. E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar. Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz rio abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fômo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta ou mais. Chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram estes religiosos e sacerdotes e o capitão com alguns de nós outros. Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou 55 anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos. Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu, junto com o altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos apóstolos, cujo é o dia, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção. Esses, que estiveram sempre à pregação, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquilo, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse uma ao pescoço de cada um. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. Isto acabado — era já bem uma hora depois do meio-dia — viemos a comer às naus, trazendo o capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras. E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram ambos. Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação. Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a cruz, despedimo-nos e viemos comer. Creio, senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui partida. Esta terra, senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Doiro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calicute, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé. E nesta maneira, senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo. E pois que, senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que dela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. [Ass.] Pero Vaz de Caminha

[Extraído de Jaime Cortesão, A carta de Pero Vaz de Caminha (Lisboa: Portugália, 1967, pp. 221-57), apud Darcy Ribeiro & Carlos de Araujo Moreira Neto (orgs.), A fundação do Brasil: Testemunhos, 1500-1700. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992, pp. 84-91.]

/ índices do capítulo 1 /


Tratado de Tordesilhas

Após várias missões diplomáticas frustradas entre Portugal e Espanha, finalmente as duas cortes, através de seus delegados, decidiram realizar uma reunião na vila de Tordesilhas, a fim de estabelecer critérios definitivos para a conquista e posse dos territórios a serem descobertos. Desta reunião resultou, em 7 de junho de 1494, o Tratado de Tordesilhas. Com base nesse documento, as terras do Novo Mundo ficariam repartidas entre as duas nações.

Dom Fernando e d. Isabel, por graça de Deus rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo, de Valência, de Galiza, de Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jaém, do Algarve, de Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canária, conde e condessa de Barcelona, senhores de Biscaia e de Molina, duques de Atenas e de Neopatria, condes de Roussilhão e da Sardenha, marqueses de Oristán e de Gociano, juntamente com o príncipe d. João, nosso mui caro e mui amado filho primogênito, herdeiro dos nossos ditos reinos e senhorios. Em fé do qual, por d. Henrique Henriques, nosso mordomo-mor e d. Gutierre de Cárdenas, comissário-mor de Leão, nosso contador-mor e o doutor Rodrigo Maldonado, todos do nosso Conselho, foi tratado, assentado e aceito por nós e em nosso nome e em virtude do nosso poder, com o sereníssimo d. João, pela graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves d’Aquém e d’Além-mar, em África, senhor da Guiné, nosso mui caro e mui amado irmão, e com Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel e d. João de Sousa, seu filho, almotacel-mor do dito sereníssimo rei nosso irmão, e Arias de Almadana, corretor dos feitos civis de sua corte e de seu foro, todos do Conselho do dito sereníssimo rei nosso irmão, em seu e em virtude de seu poder, seus embaixadores que a nós vieram, sobre a demanda que nós e ao dito sereníssimo rei nosso irmão pertence, do que até sete dias deste mês de junho, em que estamos, da assinatura desta escritura está por descobrir no mar Oceano, na qual dito acordo dos nossos ditos procuradores, entre outras coisas, prometeram que dentro de certo prazo nela estabelecido, nós outorgaríamos, confirmaríamos, juraríamos, ratificaríamos e aprovaríamos a dita aceitação por nossas pessoas; e nós, desejando cumprir e cumprindo tudo o que assim em nosso nome foi assentado, e aceito, e outorgado acerca do supradito, mandamos trazer diante de nós a dita escritura da dita convenção e assento para vê-la e examiná-la, e o teor dela de verbo ad verbum é este que se segue: Em nome de Deus Todo-Poderoso, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas realmente distintas e separadas, e uma só essência divina. Manifesto e notório seja a todos quantos este público instrumento virem, dado na vila de Tordesillas, aos sete dias do mês de junho, ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e noventa e quatro anos, em presença de nós os secretários e escribas e notários públicos dos abaixo assinados, estando presentes os honrados d. Henrique Henriques, mordomo-mor dos mui altos e mui poderosos príncipes senhores d. Fernando e d. Isabel, por graça de Deus, rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada etc., e d. Gutierre de Cárdenas, comendador-mor dos ditos senhores rei e rainha, e o doutor Rodrigo Maldonado, todos do Conselho dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília e de Granada etc., seus procuradores bastantes de uma parte, e os honrados Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, e d. João de Sousa, seu filho, almotacél-mor do mui alto e mui excelente senhor d. João, pela graça de Deus rei de Portugal e Algarves, d’Aquém e d’Além-mar, em África, e senhor da Guiné; e Arias de Almadana, corregedor dos feitos cíveis em sua corte, e do seu Desembargo, todos do Conselho do dito rei de Portugal, e seus embaixadores e procuradores bastantes, como ambas as ditas partes o mostraram pelas cartas e poderes e procurações dos ditos senhores seus constituintes, o teor das quais, de verbo ad verbum é este que se segue: D. Fernando e d. Isabel, por graça de Deus rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, da Maiorca, de Sevilha, de Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jaém, de Algarve, de Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canária, conde e condessa de Barcelona, e senhores de Biscaia e de Molina, duques de Atenas e de Neopatria, condes de Roussilhão e da Sardenha, marqueses de Oristán e de Gociano etc. Em fé do que, o sereníssimo rei de Portugal, nosso mui caro mui amado irmão, nos enviou como seus embaixadores e procuradores a Rui de Sousa, do qual são as vilas de Sagres e Beringel, e a d. João de Sousa, seu almotacél-mor, e Arias de Almadana, seu corregedor dos feitos cíveis em sua corte, e de seu Desembargo, todos do seu Conselho, para entabolar e tomar assento e concórdia conosco ou com nossos embaixadores e procuradores, em nosso nome, sobre a divergência que entre nós e o sereníssimo rei de Portugal, nosso irmão, há sobre o que a nós e a ele pertence do que até agora está por descobrir no mar Oceano; em razão do que, confiando de vós d. Henrique Henriques, nosso mordomo-mor e d. Gutierre de Cárdenas, comendador-mor de Leão, nosso contador-mor, e o doutor Rodrigo Maldonado, todos de nosso Conselho, que sois tais pessoas, que zelareis nosso serviço e que bem fielmente fareis o que por nós vos for mandado e encomendado; por esta presente carta vos damos todos nossos poderes completos naquela maneira e forma que podemos e em tal caso se requer, especialmente para que por nós e em nosso nome e de nossos herdeiros e sucessores, e de todos nossos reinos e senhorios, súditos e naturais deles, possais tratar, ajustar e assentar e fazer contrato e concórdia com os ditos embaixadores do sereníssimo rei de Portugal, nosso irmão, em seu nome, qualquer concerto, assento, limitação, demarcação e concórdia sobre o que dito é, pelos ventos em graus de Norte e de Sul e por aquelas partes, divisões e lugares do céu, do mar e da terra, que a vós bem visto forem e assim vos damos o dito poder para que possais deixar ao dito rei de Portugal e a seus reinos e sucessores todos os mares, e ilhas, e terras que forem e estiverem dentro de qualquer limitação e demarcação que com ele assentarem e deixarem. E outrossim vos damos o dito poder, para que em nosso nome e no de nossos herdeiros e sucessores, e de nossos reinos e senhorios, e súditos e naturais deles, possais concordar a assentar e receber, e acabar com o dito rei de Portugal, e com seus ditos embaixadores e procuradores em seu nome, que todos os mares, ilhas e terras que forem ou estiverem dentro da demarcação e limitação de costas, mares e ilhas e terras que ficarem por vós e por nossos sucessores, e de nosso senhorio e conquista, sejam de nossos reinos e sucessores deles, com aquelas limitações e isenções e com todas as outras divisões e declarações que a vós bem visto for, e para que sobre tudo que está dito, e para cada coisa e parte disso, e sobre o que a isso é tocante, ou disso dependente, ou a isso anexo ou conexo de qualquer maneira, possais fazer e outorgar, concordar, tratar e receber, e aceitar em nosso nome e dos ditos nossos herdeiros e sucessores de todos os nossos reinos e senhorios, súditos e naturais deles, quaisquer tratados, contratos e escrituras, como quaisquer vínculos, atos, modos, condições e obrigações e estipulações, penas, sujeições e renúncias, que vós quiserdes, e bem outorgueis todas as coisas e cada uma delas, de qualquer natureza ou qualidade, gravidade ou importância que tenham ou possam ter, ainda que sejam tais que pela sua condição requeiram outro nosso especificado e especial mandado e que delas se devesse de fato e de direito fazer singular e expressa menção e, que nós, estando presentes poderíamos fazer e outorgar e receber. E outrossim vos damos poder suficiente para que possais jurar e jureis por nossas almas, que nós e nossos herdeiros e sucessores, súditos, naturais e vassalos, adquiridos e por adquirir, teremos, guardaremos e cumpriremos, e terão, guardarão e cumprirão realmente e com efeito, tudo o que vós assim assentardes, capitulardes, jurardes, outorgardes e firmardes, livre de toda a cautela, fraude, engano, ficção e simulação e assim possais em nosso nome capitular, assegurar e prometer que nós em pessoa seguramente juraremos, prometeremos, outorgaremos e firmaremos tudo o que vós em nosso nome, acerca do que dito é assegurardes, prometerdes e acordardes, dentro daquele lapso de tempo que vos bem parecer, e que o guardaremos e cumpriremos realmente, e com efeito, sob as condições, penas e obrigações contidas no contrato das bases entre nós e o dito sereníssimo rei nosso irmão feito e concordado, e sobre todas as outras que vós prometerdes e assentardes, as quais desde agora prometemos pagar, se nelas incorrermos, para tudo o que e cada coisa ou parte disso, vos damos o dito poder com livre e geral administração, e prometemos e asseguramos por nossa fé e palavra real de ter, guardar e cumprir, nós e nossos herdeiros e sucessores, tudo o que por vós, acerca do que dito é, em qualquer forma e maneira for feito e capitulado, jurado e prometido, e prometemos de o ter por firme, bom e sancionado, grato, estável e válido, e verdadeiro agora e em todo tempo, e que não iremos nem viremos contra isso nem contra parte alguma disso, nem nós nem herdeiros e sucessores, por nós, nem por outras pessoas intermediárias, direta nem indiretamente, sob qualquer pretexto ou causa, em juízo, nem fora dele, sob obrigação expressa que para isso fazemos de todos os nossos bens patrimoniais e fiscais, e outros quaisquer de nossos vassalos e súditos e naturais, móveis e de raiz, havidos e por haver. Em testemunho do que mandamos dar esta nossa carta de poder, a qual firmamos com os nossos nomes, mandamos selar com o nosso selo. Dada na vila de Tordesillas aos cinco dias do mês de junho, ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e noventa e quatro. Eu, el-rei. Eu, a rainha. Eu, Fernando Álvarez de Toledo, secretário do Rei e da Rainha, nossos senhores, a fiz escrever a seu mandado. D. João, por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-mar em África, e senhor de Guiné etc. A quantos esta nossa carta de poderes e procuração virem, fazemos saber que em virtude do mandado dos mui altos e mui excelentes e poderosos príncipes, o rei d. Fernando e a rainha d. Isabel, rei e a rainha de Castela, de Leão, de Aragão, de Sicília, de Granada etc., nossos mui amados e prezados irmãos, foram descobertas e achadas novamente algumas ilhas, e poderiam adiante descobrir e achar outras ilhas e terras sobre as quais tanto umas como outras, achadas e por achar, pelo direito e pela razão que nisso temos, poderiam sobrevir entre nós todos e nossos reinos e senhorios, súditos e naturais deles, que Nosso Senhor não consinta; a nós apraz pelo grande amor e amizade que entre todos nós existe, e para se buscar, procurar e conservar maior paz e mais firme concórdia e sossego, que o mar em que as ditas ilhas estão e forem achadas, se parte e demarque entre nós todos de alguma boa, certa e limitada maneira; e porque nós no presente não podemos entender nisto pessoalmente, confiante a vós Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, e d. João de Sousa, nosso almotacél-mor, e Arias de Almadana, corregedor dos feitos cíveis em nossa corte e do nosso Desembargo, todos do nosso Conselho, pela presente carta vos damos todo nosso poder, completo, autoridade e especial mandado, e vos fazemos e constituímos a todos em conjunto, e a dois de vós e a cada um de vós (in solidum) se os outros por qualquer modo estiverem impedidos, nossos embaixadores e procuradores, na mais ampla forma que podemos e em tal podemos e em tal caso se requer e geral especialmente; e de tal modo que a generalidade não derrogue a especialidade, nem a especialidade, a generalidade, para que, por nós, e em nosso nome e de nossos herdeiros e sucessores, e de todos os nossos reinos e senhorios, súditos e naturais deles possais tratar, concordar e concluir e fazer, trateis, concordeis e assenteis, e façais com os ditos rei e rainha de Castela, nossos irmãos, ou com quem para isso tenha os seus poderes, qualquer concerto e assento, limitação, demarcação e concórdia sobre o mar Oceano, ilhas e terra firme, que nele houver por aqueles rumos de ventos e graus de Norte e Sul, e por aquelas partes, divisões e lugares de seco e do mar e da terra, que bem vos parecer. E assim vos damos o dito poder para que possais deixar, e deixeis aos ditos rei e rainha e a seus reinos e sucessores todos os mares, ilhas e terras que estiverem dentro de qualquer limitação e demarcação que com os ditos rei e rainha ficarem: e assim vos damos os ditos poderes para em nosso nome e no dos nossos herdeiros e sucessores e de todos os nossos reinos e senhorios, súditos e naturais deles, possais com os ditos rei e rainha, ou com seus procuradores, assentar e receber e acabar que todos os mares, ilhas e terras que forem situados e estiverem dentro da limitação e demarcação das costas, mares, ilhas e terras que por nós e nossos sucessores ficarem, sejam nossos e de nossos senhorios e conquista, e assim de nossos reinos e sucessores deles, com aquelas limitações e isenções de nossas ilhas e com todas as outras cláusulas e declarações que vos bem parecerem. Os quais ditos poderes damos a vós os ditos Rui de Sousa e d. João de Sousa e o licenciado Arias da Almadana, para que sobre tudo o que dito é, e sobre cada coisa e parte disso e sobre o que a isso é tocante, e disso dependente, e a isso anexo, e conexo de qualquer maneira, possais fazer, e outorgar, concordar, tratar e distratar, receber e aceitar em nosso nome e dos ditos nossos herdeiros e sucessores e todos nossos reinos e senhorios, súditos e naturais deles em quaisquer capítulos, contratos e escrituras, com quaisquer vínculos, pactos, modos, condições, penas, sujeições e renúncias que vós quiserdes e a vós bem visto for e sobre isso possais fazer e outorgar e façais e outorgueis todas as coisas, e cada uma delas, de qualquer natureza e qualidade, gravidade e importância que sejam ou possam ser posto que sejam tais que por sua condição requeiram outro nosso especial e singular mandado, e se devesse de fato e de direito fazer singular e expressa menção e que nós presentes, poderíamos fazer e outorgar, e receber. E outrossim vos damos poderes completos para que possais jurar, e jureis por nossa alma, que nós e nossos herdeiros e sucessores, súditos e naturais, e vassalos, adquiridos e por adquirir , teremos, guardaremos e cumpriremos, terão, guardarão e cumprirão realmente, e com efeito, tudo o que vós assim assentardes e capitulardes e jurardes, outorgardes e firmardes, livre de toda cautela, fraude e engano e fingimento, e assim possais em nosso nome capitular, assegurar e prometer que nós em pessoa asseguraremos, juraremos, prometeremos, e firmaremos tudo o que vós no sobredito nome, acerca do que dito é assegurardes, prometerdes e capitulardes, dentro daquele prazo e tempo que vos parecer bem, e que o guardaremos e cumpriremos realmente e com efeito sob as condições, penas e obrigações contidas no contrato das pazes entre nós feitas e concordadas, e sob todas as outras que vós prometerdes e assentardes no nosso sobredito nome, os quais desde agora prometemos pagar e pagaremos realmente e com efeito, se nelas incorrermos. Para tudo o que e cada uma coisa e parte disso, vos damos os ditos poderes com livre e geral administração, e prometemos e asseguramos com a nossa fé real, ter e guardar e cumprir, e assim os nossos herdeiros e sucessores, tudo o que por vós, acerca do que dito é em qualquer maneira e forma for feito, capitulado e jurado e prometido; e prometemos de o haver por firme, sancionado e grato, estável e valedouro, desde agora para todo tempo e que não iremos, nem viremos, nem irão contra isso, nem contra parte alguma disso, em tempo algum; nem por alguma maneira, por nós, nem por si, nem por intermediários, direta nem indiretamente, e sob pretexto algum ou causa em juízo nem fora dele, sob obrigação expressa que para isso fazemos dos ditos nossos reinos e senhorios e de todos os nossos bens patrimoniais, fiscais e outros quaisquer de nossos vassalos e súditos e naturais, móveis e de raiz, havidos e por haver. Em testemunho e fé do que vos mandamos dar esta nossa carta por nós firmada e selada com o nosso selo, dada em nossa cidade de Lisboa aos oito dias de março. Rui de Pina a fez no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e noventa e quatro. El rei. E logo os ditos procuradores dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão, de Sicília, de Granada etc., e do dito senhor rei de Portugal e dos Algarves etc., disseram: que visto como entre os ditos senhores seus constituintes há certa divergência sobre o que a cada uma das ditas partes pertence do que até hoje, dia da conclusão deste tratado, está por descobrir no mar Oceano; que eles, portanto, para o bem da paz e da concórdia e pela conservação da afinidade e amor que o dito senhor rei de Portugal tem pelos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Aragão etc., praz a suas altezas, e os seus ditos procuradores em seu nome, e em virtude dos ditos seus poderes, outorgaram e consentiram que se trace e assinale pelo dito mar Oceano uma raia ou linha direta de pólo a pólo; convém a saber, do pólo Ártico ao pólo Antártico, que é de norte a sul, a qual raia ou linha e sinal se tenha de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e setenta léguas das ilhas de Cabo Verde em direção à parte do poente, por graus ou por outra maneira, que melhor e mais rapidamente se possa efetuar contanto que não seja dado mais. E que tudo o que até aqui tenha achado e descoberto, e daqui em diante se achar e descobrir pelo dito senhor rei de Portugal e por seus navios, tanto ilhas como terra firme desde a dita raia e linha dada na forma supracitada indo pela dita parte do levante dentro da dita raia para a parte do levante ou do norte ou do sul dele, contanto que não seja atravessando a dita raia, que tudo seja, e fique e pertença ao dito senhor rei de Portugal e aos seus sucessores, para sempre. E que todo o mais, assim ilhas como terra firme, conhecidas e por conhecer, descobertas e por descobrir, que estão ou forem encontrados pelos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Aragão etc., e por seus navios, desde a dita raia dada na forma supra indicada indo pela dita parte de poente, depois de passada a dita raia em direção ao poente ou ao norte-sul dela, que tudo seja e fique, e pertença, aos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão etc. e aos seus sucessores, para sempre.

Item: os ditos procuradores prometem e asseguram, em virtude dos ditos poderes, que de hoje em diante não enviarão navios alguns, convém a saber, os ditos senhores rei e rainha de Castela, e de Leão, e de Aragão etc., por esta parte da raia para as partes de levante, aquém da dita raia, que fica para o dito senhor rei de Portugal e dos Algarves etc., nem o dito senhor rei de Portugal à outra parte da dita raia, que fica para os ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão etc., a descobrir e achar terra nem ilhas algumas, nem a contratar, nem resgatar, nem conquistar de maneira alguma; porém que se acontecesse que caminhando assim aquém da dita raia os ditos navios dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão etc., achassem quaisquer ilhas ou terras dentro do que assim fica para o dito senhor rei de Portugal e dos Algarves, que assim seja e fique para o dito senhor rei de Portugal e para seus herdeiros para todo o sempre, que suas altezas o hajam de mandar logo dar e entregar. E se os navios do dito senhor de Portugal acharem quaisquer ilhas e terras na parte dos ditos senhores rei e rainha de Castela, e de Leão, e de Aragão etc., que tudo tal seja e fique para os ditos senhores rei e rainha de Castela, e de Leão etc., e para seus herdeiros para todo o sempre, e que o dito senhor rei de Portugal o haja logo de mandar, dar e entregar.

Item: para que a dita linha ou raia da dita partilha se haja de traçar e trace direita e a mais certa que possa ser pelas ditas trezentas e setenta léguas das ditas ilhas de Cabo Verde em direção à parte do poente, como dito é, fica assentado e concordado pelos ditos procuradores de ambas as ditas partes, que dentro dos dez primeiros meses seguintes, a contar do dia da conclusão deste tratado, hajam os ditos senhores seus constituintes de enviar duas ou quatro caravelas, isto é, uma ou duas de cada parte, mais ou menos, segundo acordarem as ditas partes serem necessárias, as quais para o dito tempo se achem juntas na ilha da grande Canária; e enviem nelas, cada uma das ditas partes, pessoas, tanto pilotos como astrólogos, e marinheiros e quaisquer outras pessoas que convenham, mas que sejam tantas de uma parte como de outra e que algumas pessoas dos ditos pilotos, e astrólogos, e marinheiros, e pessoas que sejam dos que enviarem os ditos senhores rei e rainha de Castela, e de Aragão etc., vão no navio ou navios que enviar o dito senhor rei de Portugal e dos Algarves etc., e da mesma forma algumas das ditas pessoas que enviar o referido senhor rei de Portugal vão no navio ou navios que mandarem os ditos senhores rei e rainha de Castela, e de Aragão, tanto de uma parte como de outra, para que juntamente possam melhor ver e reconhecer o mar e os rumos e ventos e graus de sul e norte, e assinalar as léguas supraditas; tanto que para fazer a demarcação e limites concorrerão todos juntos os que forem nos ditos navios, que enviarem ambas as ditas partes, e levarem os seus poderes, que os ditos navios, todos juntamente, constituem seu caminho para as ditas ilhas de Cabo Verde e daí tomarão sua rota direita ao poente até às ditas trezentas e setenta léguas, medidas pelas ditas pessoas que assim forem, acordarem que devem ser medidas sem prejuízo das ditas partes e ali onde se acabarem se marque o ponto, e sinal que convenha por graus de sul e de norte, ou por singradura de léguas, ou como melhor puderem concordar: a qual dita raia assinalem desde o dito pólo Ártico ao dito pólo Antártico, isto é, de norte a sul, como fica dito: e aquilo que demarcarem o escrevam e firmem como os próprios as ditas pessoas que assim forem enviadas por ambas as ditas partes, as quais hão de levar faculdades e poderes das respectivas partes, cada um da sua, para fazer o referido sinal e delimitação feita por eles, estando todos conformes, que seja tida por sinal e limitação perpetuamente para todo o sempre para que nem as ditas partes, nem algumas delas, nem seus sucessores jamais a possam contradizer, nem tirá-la, nem removê-la em tempo algum, por qualquer maneira que seja possível ou que possível possa ser. E se por acaso acontecer que a dita raia e limite de pólo a pólo, como está declarado, topar em alguma ilha ou terra firme, que no começo de tal ilha ou terra que assim for encontrada onde tocar a dita linha se faça alguma marca ou torre: e que a direito do dito sinal ou torre se sigam daí para diante outros sinais pela tal ilha ou terra na direção da citada raia os quais partam o que a cada umas das partes pertencer dela e que os súditos das ditas partes não ousem passar uns à porção dos outros, nem estes à daqueles, passando o dito sinal ou limite na tal ilha e terra.

Item: porquanto para irem os ditos navios dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão etc., dos reinos e senhorios até sua dita porção além da dita raia, na maneira que ficou dito, é forçoso que tenham de passar pelos mares desta banda da raia que fica para o dito senhor rei de Portugal, fica por isso concordado e assentado que os ditos navios dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão etc., possam ir e vir e vão e venham livre, segura e pacificamente sem contratempo algum pelos ditos mares que ficam para o dito senhor rei de Portugal, dentro da dita raia em todo o tempo e cada vez e quando suas altezas e seus sucessores quiserem, e por bem tiverem, os quais vão por seus caminhos direitos e rotas, desde seus reinos para qualquer parte do que esteja dentro da raia e limite, onde quiserem enviar para descobrir, e conquistar e contratar, e que sigam seus caminhos direito por onde eles acordarem de ir para qualquer ponto da sua dita parte, e daqueles não se possam apartar, salvo se o tempo adverso os fizer afastar, contanto que não tomem nem ocupem, antes de passar a dita raia, coisa alguma do que for achado pelo dito senhor rei de Portugal na sua dita porção e que, se alguma coisa acharem os seus ditos navios antes de passarem a dita raia, conforme está dito, que isso seja para o dito senhor rei de Portugal, e suas altezas o hajam de mandar logo dar e entregar. E porque poderia suceder que os navios e gentes dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão etc., ou por sua parte, terão achado até aos vinte dias deste mês de junho em que estamos da conclusão deste tratado, algumas ilhas e terra firme dentro da dita raia, que se há de traçar de pólo a pólo por linha reta ao final das ditas trezentas e setenta léguas contadas desde as ditas ilhas de Cabo Verde para o poente, como dito está, fica acordado e assentado, para desfazer qualquer dúvida, que todas as ilhas e terra firme, que forem achadas e descobertas de qualquer maneira até aos ditos vinte dias deste dito mês de junho, ainda que sejam encontradas por navios e gentes dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão etc., contanto que estejam dentro das primeiras duzentas e cinqüenta léguas das ditas trezentas e setenta léguas, contadas desde as ditas ilhas de Cabo Verde ao poente em direção à dita raia, em qualquer parte delas para os ditos pólos, que forem achadas dentro das ditas duzentas e cinqüenta léguas, traçando-se uma raia, ou linha reta de pólo a pólo, onde se acabarem as ditas duzentas e cinqüenta léguas, seja e fique para o dito senhor rei de Portugal e dos Algarves etc., e para os seus sucessores e reinos para sempre, e que todas as ilhas e terra firme, que até os ditos vinte dias deste mês de junho em que estamos, forem encontradas e descobertas por navios dos ditos senhores rei e rainha de Castela, e de Aragão etc., e por suas gentes ou de outra qualquer maneira dentro das outras cento e vinte léguas que ficam para complemento das ditas trezentas e setenta léguas, em que há de acabar a dita raia, que se há de traçar de pólo a pólo, como ficou dito, em qualquer parte das ditas cento e vinte léguas para os ditos pólos, que sejam achadas até o dito dia, sejam e fiquem para os ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão etc., e para os seus sucessores e seus reinos para todo sempre, conforme é e há de ser seu tudo o que descobrirem além da dita raia das ditas trezentas e setenta léguas, que ficam para suas altezas, como ficou dito, ainda que as indicadas cento e vinte léguas estejam dentro da dita raia das ditas trezentas e setenta léguas, que ficam para o dito senhor rei de Portugal e dos Algarves etc., como dito está. E se até os ditos vinte dias deste dito mês de junho não for encontrada pelos ditos navios de suas altezas coisa alguma dentro das ditas cento e vinte léguas, e dali para diante o acharem, que seja para o dito senhor rei de Portugal, como no supra capítulo escrito está contido. E que tudo o que ficou dito e cada coisa e parte dele, os ditos d. Henrique Henriques, mordomo-mor, e d. Gutierre de Cárdenas, contador-mor, e do doutor Rodrigo Maldonado, procuradores dos ditos mui altos e mui poderosos príncipes senhores o rei e a rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada etc., e em virtude dos seus ditos poderes que vão incorporados, e os ditos Rui de Sousa, e d. João de Sousa, seu filho e Arias de Almadana, procuradores e embaixadores do dito mui alto e mui excelente príncipe o senhor rei de Portugal e dos Algarves,d’Aquém e d’Além em África e senhor de Guiné, e em virtude dos seus ditos poderes que vão supra-incorporados, prometerem e assegurarem em nome dos seus ditos constituintes, que eles e seus sucessores e reinos, e senhorios, para todo o sempre, terão, guardarão e cumprirão realmente, e com efeito, livre de toda fraude e penhor, engano, ficção e simulação, todo o contido nesta capitulação, e cada uma coisa, e parte dele, quiseram e outorgaram que todo o contido neste convênio e cada uma coisa, e parte disso será guardada e cumprida e executada como se há de guardar, cumprir e executar todo o contido na capitulação das pazes feitas e assentadas entre os ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão etc., e o senhor d. Afonso rei de Portugal, que em santa glória esteja, e o dito senhor rei que agora é de Portugal, seu filho, sendo príncipe o ano que passou de mil quatrocentos e setenta e nove anos, e sob aquelas mesmas penas, vínculos, seguranças e obrigações, segundo e de maneira que na dita capitulação das ditas pazes está contida. E se obrigaram a que nem as ditas pazes, nem algumas delas, nem seus sucessores para todo o sempre irão mais nem se voltarão contra o que acima está dito e especificado, nem contra coisa alguma nem parte disso direta nem indiretamente, nem por outra maneira alguma, em tempo algum, nem por maneira alguma pensada ou não pensada que seja ou possa ser, sob as penas contidas na dita capitulação das ditas pazes, e a pena cumprida ou não cumprida ou graciosamente remida; que esta obrigação, e capitulação, e assento, deixe e fique firme, estável e válida para todo o sempre, para assim terem, e guardarem, e cumprirem, e pagarem em tudo o supradito aos ditos procuradores em nome dos seus ditos constituintes, obrigaram os bens cada um de sua dita parte, móveis, e de raiz, patrimoniais e fiscais e de seus súditos e vassalos havidos e por haver, e renunciar a quaisquer leis e direitos de que se possam valer as ditas partes e cada uma delas para ir e vir contra o supradito, e cada uma coisa, e parte disso realmente, e com efeito, livre toda a fraude, penhor, e engano, ficção e simulação, e não o contradirão em tempo algum, nem por alguma maneira sob a qual o dito juramento juraram não pedir absolvição nem relaxamento disso ao nosso santíssimo padre, nem a outro qualquer legado ou prelado que a possa dar, e ainda que de motu proprio a dêem não usarão dela, antes por esta presente capitulação suplicam no dito nome ao nosso santíssimo padre que haja sua santidade por bem confiar e aprovar esta dita capitulação, conforme nela se contém, e mandando expedir sobre isto suas bulas às partes, ou a quaisquer delas, que as pedir e mandam incorporar nelas o teor desta capitulação, pondo suas censuras aos que contra ela forem ou procederem em qualquer tempo que seja ou possa ser. E assim mesmo os ditos procuradores no dito nome se obrigaram sob a dita pena e juramento, dentro dos cem primeiros dias seguintes, contados desde o dia da conclusão deste tratado, darão uma parte a esta primeira aprovação, e ratificação desta dita capitulação, escritas em pergaminho, e firmadas nos nomes dos ditos senhores seus constituintes, e seladas, com os seus selos de cunho pendentes; e na escritura que tiverem de dar os ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, de Aragão etc., tenha de firmar e consentir e autorizar o mui esclarecido e ilustríssimo senhor o príncipe d. João seu filho: de tudo o que dito é, outorgaram duas escrituras de um mesmo teor uma tal qual a outra, as quais firmaram com seus nomes e as outorgaram perante os secretários e testemunhas abaixo assinadas para cada uma das partes a sua e a qualquer que se apresentar, vale como se ambas as duas se apresentassem, as quais foram feitas e outorgadas na dita vila de Tordesillas no dita, mês e ano supraditos. D. Henrique, comendador-mor. Rui de Sousa. d. João de Sousa. Doutor Rodrigo Maldonado. Licenciado Arias. Testemunhas que foram presentes, que vieram aqui firmar seus nomes ante os ditos procuradores e embaixadores e outorgar o supradito, e fazer o dito juramento, o comendador Pedro de Leon, o comendador Fernando de Torres, vizinhos da vila de Valladolid, o comendador Fernando de Gamarra, comendador de Lagra e Cenate, contínuos da casa dos ditos rei e rainha nossos senhores, e João Soares de Siqueira e Rui Leme, e Duarte Pacheco, contínuos da casa do senhor rei de Portugal para isso chamados. E eu, Fernando Dalvares de Toledo, secretário do rei e da rainha nossos senhores e de seu Conselho, e seu escrivão de Câmara, e notário público em sua corte, e em todos os seus reinos e senhorios, estive presente a tudo que dito está declarado em um com as ditas testemunhas, e com Estevam Baez secretário do dito senhor rei de Portugal, que pela autoridade que os ditos rei e a rainha nossos senhores lhe deram para fazer dar sua fé neste auto em seus reinos, que esteve também presente ao que dito está, e a rogo e outorgamento de todos os procuradores e embaixadores que em minha presença e na sua aqui firmaram seus nomes, este instrumento público de capitulação fiz escrever, o qual vai escrito nestas seis folhas de papel de formato inteiro escritas de ambos os lados e mais esta em que vão os nomes dos supraditos e o meu sinal; e no fim de cada página vai rubricado o sinal do meu nome e o do dito Estevam Baez, e em fé disso pus aqui este meu sinal, que é tal. Em testemunho de verdade, Fernão Dalvares. E eu, dito Estevam Baez, que por autoridade que os ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão etc., me deram para fazer público em todos os seus reinos e senhorios, juntamente com o dito Fernão Dalvares, a rogo e requerimento dos ditos embaixadores e procuradores a tudo presente estive, e em fé a certificação disso aqui com o meu público sinal assinei, que é tal. A qual dita escritura de assento, e capitulação e concórdia supra incorporada, vista e entendida por nós e pelo dito príncipe d. João, nosso filho, nós a aprovamos, louvamos, e confirmamos, e outorgamos, ratificamos, e prometemos ter, guardar e cumprir todo o supradito nela contido, e cada uma coisa, e parte disso realmente e com efeito, livre de toda a fraude, cautela e simulação, e de não ir, nem vir contra isso, nem contra parte disso em tempo algum, nem por alguma maneira, que seja, ou possa ser; e para maior firmeza, nós, e o dito príncipe d. João nosso filho, juramos por Deus, pela Santa Maria e pelas palavras do Santo Evangelho, onde quer que mais amplamente estejam impressas, e pelo sinal da cruz, na qual corporalmente colocamos nossas mãos direitas em presença dos ditos Rui de Sousa e d. João de Sousa, e o licenciado Arias de Almadana, embaixadores e procuradores do dito e sereníssimo rei de Portugal, nosso irmão, de o assim ter e guardar e cumprir, e a cada uma coisa, e parte do que a nós incumbe realmente, e com efeito, como está dito, por nós e por nossos herdeiros e sucessores, e pelos nossos ditos reinos e senhorios, e súditos e naturais deles, sob as penas e obrigações, vínculos e renúncias no dito contrato de capitulação e concórdia supra-escrito contidas: por certificação e corroboração do qual, firmamos nesta nossa carta nossos nomes e a mandamos selar com o nosso selo de cunho pendentes em fios de seda em cores. Dada na vila de Arévalo, aos dois dias do mês de julho, ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e noventa e quatro. Eu, el-rei. Eu, a rainha. Eu, o príncipe. E eu, Fernão Dalvares de Toledo, secretário d’el-rei e da rainha, nossos senhores, a fiz escrever por sua ordem.

[Extraído de José Carlos de Macedo Soares. Fronteiras do Brasil no regime colonial, Rio de Janeiro: José Olympio, pp. 65-77, apud Darcy Ribeiro & Carlos de Araujo Moreira Neto (orgs.). A fundação do Brasil: Testemunhos, 1500-1700. Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 69-74.]

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