Gazeta Mercantil

20 de junho de 1997

Uma animada excursão tropical

Daniel Piza

Não espere grandes novidades nem sábias sínteses de Viagem pela História do Brasil, livro e CD-ROM dirigidos por Jorge Caldeira, com textos de Sergio Goes de Paula e Claudio Marcondes, concepção tecnológica de Flavio de Carvalho e patrocínio do banco BBA. Trata-se, por assim dizer, de uma excursão, com forte teor recreativo e extremo bom gosto visual, sem aprofundamentos ou mesmo sacadas de conteúdo. Faz-se uma viagem repleta de escalas e baldeações, com paradas ligeiras em que se vislumbram temas interessantes e pesquisas por fazer. Em outras palavras, você não vai encontrar aqui nada além do que aprendeu na escola, e aqueles que estiverem em idade escolar poderão dispor de um instrumento de consulta lúdico e amplo, mas insuficiente como pesquisa.

É um almanaque virtual, com textos curtos e superficiais e realização editorial eficaz. Um dos grandes lances de entretenimento do CD-ROM, por exemplo, está na biografia de Aleijadinho, em que clicamos a palavra "estátuas" e temos uma amostra animada de suas esculturas de cedro da Igreja Bom Jesus de Matosinhos (Congonhas do Campo); os rostos se sucedem em "fade out" ao som do "Kyrie" da "Missa de Santa Cecília" do padre-compositor José Maurício Nunes Garcia, gerando ótimo efeito. O CD-ROM é um prodígio tecnológico: as imagens são belíssimas e as janelas são abertas com rapidez espantosa. (Para constar: rodei-o em drive 4x de um PC Pentium 133 com 32 Mb de memória e tela plana de 15 polegadas.) Mas atrativos como esse de Aleijadinho são raros numa obra cuja leitura é fragmentária, silenciosa e convencional. Na janela de "música barroca", por exemplo, poderiam ter incluído mais trechos de composições, ou, quem sabe, usado ao longo do CD-ROM muitos outros exemplos da arte nacional, tais como os cantos indígenas. Há execução de duas canções populares, "Pelo Telefone" (primeiro samba gravado) e "Desafinado", mas em todo o verbete sobre rádio, por exemplo, não existe um único exemplo — e até mesmo um discurso político seria bem-vindo.

A cultura, por sinal, é a grande ausente do produto. Por que há uma biografia de Gregório de Matos, acrescida de um poema, e não há uma de Machado de Assis? Por que não um trecho de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, quando se fala em Canudos? Por que não um poema político de Drummond? Vila-Lobos também podia ser agraciado com um trecho de composição. Uma das tendências mais fortes da historiografia contemporânea é considerar a cultura em aspecto menos secundário. Um trecho de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, poderia ilustrar muito bem a tensão ideológica dos anos 60. E assim por diante. O século XX, de resto, é tratado muito mais rapidamente do que o período colonial, por exemplo. Os escravos comparecem o tempo todo ao CD-ROM, mas os imigrantes europeus não merecem muita demora. Ao mesmo tempo, a história recentíssima parece contaminada de opiniões, enquanto o resto do texto se pauta pela presunção de neutralidade. Faltam também informações importantes (a fundação de São Paulo, por exemplo) e questionamentos (por que Tiradentes foi o escolhido para a morte exemplar, se não era exatamente o chefe dos inconfidentes?). E sente-se falta de um instrumento de busca das palavras em hipertexto, marcadas em vermelho, o que facilitaria a consulta.

Mas o interessante da leitura, tanto do livro como do CD-ROM, permanece assegurado pela edição, ainda que o texto seja de qualidade apenas razoável. (Escapou até um "como por exemplo", erro de redundância.) A narrativa se ramifica inteligentemente, pois, além da velocidade, o hipertexto se vale de uma estrutura simples, nítida, e com isso evita o risco — comum em tantos CD-ROMs — de se aproximar do caótico, de levar o leitor a entrar numa ramificação e se atrapalhar para voltar ao tronco principal. Aqui o texto central está sempre ao alcance de um clic, e há no alto uma barra de comandos que permite saltos a qualquer momento, sem a restrição de estar num capítulo ou outro. É saboroso, por exemplo, abrir uma janela e encontrar o texto de um francês, em 1850, descrevendo a beleza das negras locais: "Fica-se definitivamente seduzido, quando elas marcham com um movimento intermitente das ancas, cheias de misteriosas confidências, que nos conduzem à perturbação dos sentidos".

Mas o mais interessante, uma vez que o CD-ROM não é nem muito divertido nem muito instrutivo, é exatamente deixar-se contaminar pela idéia do "travelling", de uma abordagem ao mesmo tempo extensiva e episódica do passado brasileiro. A sensação que se tem, na leitura linear (do CD-ROM ou do livro, embora este tenha menos subcapítulos), é a de uma história que se repete — quase sempre como farsa — e teima em não dar guinadas, em não sofrer mudanças radicais, em optar sempre pelos panos-quentes da cordialidade...Desde as capitanias hereditárias até a recusa da Diretas-já, vemos claramente como o País sempre foi manietado por uma elite autocentrada, devotada a partilhar subsídios e trocar favores e incapaz de combater as mais elementares deficiências sociais, como o analfabetismo e a pobreza de tantos.

Há no texto condescendência com os jesuítas, por exemplo, que desaparecem no caso dos invasores estrangeiros, além de "gilbertofreyrismos" aqui e ali (pois a licenciosidade tropical "choca" os europeus que aqui chegam simplesmente porque são "puritanos" que não entendem uma cultura diferente da sua), mas o caráter inercial da sociedade civil e o espírito cesarista dos governos sucessivos estão mais do que evidenciados. Um homem como José Bonifácio dá saudades": eis um dos poucos verdadeiros liberais a pisar o solo brasileiro em seus quase 500 anos... Pois quando lemos sobre o Encilhamento — o ganho fácil dos especuladores criado pelas altas taxas de juros, pela generosa emissão monetária e pelo irrealismo cambial do governo da Velha República — somos obrigados a nos lembrar imediatamente da política econômica praticada até hoje, em que investidores têm acesso antecipado a informações sigilosas e usufruem do endividamento público contínuo. A viagem não permite muito aprofundamento, mas está longe de ser um cartão postal.