Jornal de Brasília

24 de junho de 1997

História Eletrônica do Brasil

Chega às livrarias a Viagem pela História do Brasil , de Jorge Caldeira, Flavio de Carvalho e Sergio Goes de Paula, em CD-ROM e em livro

Paulo Paniago

Uma história não-linear do Brasil. Para uma realidade fragmentária, uma civilização formada por miscigenação e escravidão, um suporte fragmentário, o CD-ROM, acompanhado de um livro.

Viagem pela História do Brasil , de Jorge Caldeira, Flavio de Carvalho, Claudio Marcondes e Sergio Goes de Paula, lançado pela Companhia das Letras, pode ser adquirido nas formas de um pacote (CD-ROM + livro) ou somente o livro, de 352 páginas.

O ideal, claro, é poder desfrutar das cerca de três mil imagens, biografias de personagens históricas e documentos integrais da história brasileira que o dispositivo eletrônico proporciona, distribuídos em 12 capítulos. O livro, no entanto, não deixa a desejar e é bastante completo.

Nessa entrevista feita por telefone, o coordenador do projeto Jorge Caldeira (autor da biografia Mauá, Empresário do Império) explica como foi o trabalho de reaprender a escrever para um suporte diferente do livro e porque a sua equipe preferiu privilegiar o que chama de "a cara do Brasileiro", mais que fazer a história do Estado brasileiro, como normalmente procedem os historiadores.

- Como foi o trabalho de coordenação da equipe de pesquisadores e que tipo de investimentos vocês obtiveram para realizar o livro?

- Eu já tinha a idéia de escrever um livro de história do Brasil desde que estava fazendo Mauá, porque fui vendo que a história era diferente do que existia ali. Conversei com o Claudio (Marcondes) e depois com o Sergio (Goes de Paula) e concluímos que era preciso fazer uma história do brasileiro. Existe essa diferença entre uma nação e um Estado. Nos últimos anos nós vivemos um processo de rebaixamento da história feito pelos militares, essa idéia de que o cidadão comum não tem nada a ver com os desafios do Estado, geralmente exercidos por alguém "iluminado". Essa história em que a sociedade não aparece e o Estado é forte é uma idéia corrente inclusive nos meios acadêmicos. Um CD-ROM é melhor para mostrar uma realidade fragmentária, formada por miscigenação e escravidão. O CD-ROM é bonito, mas caro, e tivemos sorte de conseguir que um banco investisse num projeto de risco, ou seja, um empréstimo que será pago se a obra for bem sucedida.

- Como você limitou o tempo histórico do livro? Por que não se avançou até um pouco além do regime autoritário?

- Porque é um período em que nada está claro. Encerramos um ciclo histórico no fim do autoritarismo. Paramos aí por uma questão de prudência histórica, porque não dá para saber como vai se comportar o mecanismo básico que forma um país.

- Como foi feita a redação desse livro?

- Foi preciso reaprender a escrever. Os textos são na maioria (95 por cento) meus e do Sergio Goes de Paula. O trabalho de informática é de Flavio de Carvalho e a edição de textos, de Claudio Marcondes, o que é monumental, porque ele teve que organizar 1.300 textos diferentes, estabelecendo as ligações entre eles. As funções de autoria num projeto assim não são normais. A distribuição iconográfica, por exemplo, não tem paralelo. Foram reunidas mais de 30 mil imagens para se chegar às duas mil que estão no CD-ROM. Isso, num país pobre iconograficamente. Você não tem, por exemplo, imagens de São Paulo anteriores ao século 18.

- Quando iniciou o projeto desse livro, você já tinha em mente que precisava dar mais atenção ao povo que os livros tradicionais de história? E o que você encontrou?

- Encontrei desde uma mulher no comando de uma capitania hereditária, até os tropeiros, o cara que fez o maior navio do mundo, as coisas que não são contadas, uma história do cotidiano, como se viajava de São Paulo a Mato Grosso de barco, por exemplo.

- Tem-se a impressão de que o Brasil, no início da história portuguesa, era uma terra de onde tudo se tira, e que essa relação, de algum modo, se manteve por muito tempo. Quando o brasileiro começou a ter consciência e orgulho de sua nacionalidade?

- O processo de diferenciação do brasileiro do colono europeu foi imediato. Agora o projeto de um país se formulou no momento da independência, e o subsídio concreto foi o ouro de Minas Gerais. Nós temos uma idéia de país que é bastante própria. Uma monarquia com representação pelo parlamento, era algo que mal e mal existiu nos Estados Unidos. A história começou a funcionar depressa. Ao lado do processo mais democrático, de miscigenação, existiu o mais excludente, a escravidão, que não só não considerava o escravo um cidadão, mas sequer o considerava gente. Esses jovens que queimaram o pataxó em Brasília são herdeiros dessa mentalidade do senhor de engenho colonial. Esses dois processos, miscigenação e escravidão, se alternam, mas não se fundem, são contraditórios e sem ponto de equilíbrio. A nossa é ainda uma nação em formação.

- Que público seu livro deve ter? Quem são esses 4.400 compradores da primeira edição completa (livro e CD-ROM) e dos 8 mil livros já vendidos até agora?

- Meu sonho era encontrar um popular num ponto de ônibus, com o livro na mão, sorrindo de algo que leu. Fiz questão de descrever de forma clara os processos e fazer a história do cidadão. Não escrevi tendo em mente alguém específico, o estudante de história ou o historiador. O nosso ponto de identificação básico é a nossa história.

- Quanto ao CD-ROM como suporte, você acredita que o livro está, por isso, com os dias contados?

- Não mesmo, por isso existe um livro junto. Cabem três Mauás de texto dentro do CD-ROM, o que é vantajoso, porque não assusta. Já imaginou quem compraria um livro com três mil páginas? A desvantagem é que o CD-ROM esconde mais, é difícil acompanhar tudo, a pessoa pode preferir iniciar a viagem pelo século 19. A glória do livro é que o leitor está condenado a seguir você, o único recurso é fechar o livro, mas do contrária, vai segui-lo linha a linha. No CD-ROM você não tem essa alegria prévia, não existe um só caminho. O livro é mais prático para manusear, pode ser levado para a cama, no ônibus. O CD-ROM, por ser algo novo e ainda sem parâmetros, acaba criando expectativas. Quem começa a gostar logo acha que estão faltando coisas. O CD-ROM é um alimentador de desejos, a pessoa quer saber por que não tem Os Sertões integral no episódio de Canudos, a obra completa de Machado de Assis, por que não tem mais arte. O historiador, um especialista, senta falta exatamente da sua especialidade.

Centro de debates na Internet

A carta integral de Pero Vaz de Caminha? Fácil. Mais detalhes sobre a Escola de Sagres? Moleza. O documento em que Lúcio Costa explica o plano-piloto de Brasília? Clic, estamos lá. Quer ouvir uma gravação de Pelo Telefone? Ou ler o texto integral dos AIs 1, 2 e 5?

Mais ainda, biografias. Américo Vespúcio, Pedro Álvares Cabral, qualquer dos imperadores, duques, viscondes, barões, presidentes. Bossa Nova e Poesia Concreta. Tudo isso é pouco perto da vastidão que existe no CD-ROM (e, de forma reduzida, no livro) Viagem pela História do Brasil, que não se inicia com a descoberta portuguesa, mas antes, com os primeiros habitantes e suas culturas.

O projeto inclui uma página na Internet (www.historiadobrasil.com.br) que vai atualizando informações e disponibiliza ainda assistência técnica, contato com os autores via correspondência eletrônica, crítica da obra (o que está saindo na mídia), a agenda dos autores. "Queremos que seja um centro de debates que discuta o Brasil na Internet", diz Jorge Caldeira. "A obra eletrônica é mais viva e não permite que os autores se distanciem depois de pronta, como acontece com o livro".

A obra permite acesso ao texto principal, ou aos almanaques, às biografias ou aos documentos. Em cada ponto, palavras em vermelho no texto permitem que o assunto se desdobre em outros, fazendo o leitor embarcar num verdadeiro turbilhão histórico. Não espanta que a primeira edição do pacote (4.400 exemplares) tenha se esgotado rapidamente. Pelo mesmo caminho vai a tiragem dos livros (11 mil).