O ESTADO DE MINAS, CADERNO ESPETÁCULO
07 de julho de 1997.

 

Navegue pela história do Brasil

CD-ROM de Jorge Caldeira recria os fatos e coloca o povo como personagem principal

Gracie Santos

Ponha de lado tudo o que você já leu, viu ou ouviu falar sobre a história do Brasil. Tire um novo passaporte e se deixe navegar pelo CD-ROM "Viagem pela História do Brasil" (Companhia das Letras), de Jorge Caldeira. Se você é daqueles que já foi à Europa sete vezes pela Abreu Turismo, saiba que esta viagem vai ser totalmente diferente. Por um motivo muito simples, mudam os personagens principais, e, consequentemente, todo o enfoque. Não se trata de um passeio didático. A história do povo brasileiro (personagem central) é interpretada, escarafunchada, esmiuçada, sem que os autores percam de vista os costumes, hábitos, rituais, desejos e ambições da população. Tudo isso alinhavado aos principais fatos e personagens badalados da nossa história, com uma ampla visão de momento e de conjunto (leia-se contexto mundial). Trata-se de uma história contada/interpretada tendo-se como base os aspectos econômico-sociais, além dos históricos.

Esteja certo, você não vai comprar este CD-ROM para ajudar seu filho a fazer pesquisas na escola. Navegando com Jorge Caldeira, Sergio Goes de Paula, Claudio Marcondes e Flavio de Carvalho, você vai compreender a história de um povo, a mistura de raças, os conflitos sócio-político-econômico-sociais e os entraves ao desenvolvimento sob uma ótica simples e coerente, mas nem sempre mostrada.

E, o que é melhor, tudo flui como se você estivesse lendo um romance conhecido com elementos novos, mais picantes, e o ritmo totalmente novo. É como ver o novo "Romeu e Julieta", de Baz Luhrmann. Saber o final não importa. O que conta é a nova (e deliciosa) leitura da mesma velha história. No CD-ROM, a linguagem é sonora, quase musical. Simples e clara. Já o visual, bem trabalhado e sério, tipo clássico, dá o tom de seriedade que o trabalho e a história merecem.

 

Saiba como eles interpretam a história

A interpretação da história do Brasil no CD-ROM e no livro parte da premissa de que uma nação não é feita apenas de circunstâncias - embora elas sejam importantes -, mas construída a partir de fundamentos que moldam a identidade de seu povo, definindo seus costumes, instituições, estabelecendo o modo pelo qual se relaciona com outras nações e como absorve as tendências dominantes em cada momento.

Logo de cara surpreendem mostrando os "Primeiros Encontros" (1549) e não a descoberta do Brasil, como se costuma encontrar na maioria dos livros didáticos. Só para situar o "navegante", o CD-ROM revela que, de acordo com algumas estimativas, por volta de 1500, cerca de 8,5 milhões de pessoas viviam no atual território nacional, ao passo que na independência, em 1822, a população brasileira não passava de três milhões de pessoas. Só na segunda metade do século XIX, com a chegada de imigrantes, a população voltou aos níveis do século XVI.

Depois de colocar que o que houve foi realmente um encontro de europeus com mais de oito milhões de pessoas, eles partem para a análise das dificuldades enfrentadas pelos "viajantes". Revelam detalhes da necessidade de adaptação ao novo mundo. Lembram-se da chegada de Carlota Joaquina de Carla Camurati ao Brasil, muita coceira e piolho depois da longa viagem e das dificuldades das ladies européias em conviver com a rusticidade da pátria conquistada? Como eles próprios dizem, só a força das armas era inútil, numa terra onde tomar espaço era fácil, mas difícil sobreviver.

Os casamentos

A maior surpresa mesmo fica por conta da análise da constituição do povo partindo do fato de que a primeira via aberta não era a guerra, mas o casamento. Havia uma regra que obrigava cada estrangeiro a "ter" uma mulher da tribo para ser aceito por ela (a tribo é claro), estabelecendo uma complexa rede de parentesco. Assim é que duas únicas relações se tornaram possíveis: a de parentes ou amigos. Era o início da mistura de raças que predomina até os dias atuais, revelado sob uma ótica nova.

Fazem ainda revelações deliciosas de rituais realizados pelos índios. Contam, por exemplo, que em muitas tribos o pai cortava o cordão umbilical do bebê com os dentes ou com uma pedra afiada. Até que caísse o umbigo, lá pelo oitavo dia, permanecia de resguardo na oca, seguindo dieta rigorosa, protegido da luz e do vento. Isso acontecia porque os índios achavam que o filho era fruto só do pai. A mão, logo depois do parto, se lavava no rio e voltava às suas atividades.

Revelam detalhes sobre a troca entre europeu e nativo: "Os machados e facas que os indígenas recebiam de seus aliados europeus logo se tornaram essenciais - eram uma revolução cultural, um enorme salto tecnológico. Já para os portugueses, a convivência com os tupis era essencial para que pudessem se fixar na terra. Enquanto tentavam adaptar as sementes trazidas da Europa, aprendiam a sobreviver nos trópicos."

A escravização

Dando seqüência à sua interpretação da história brasileira, os autores passam ao segundo fundamento: para produzir foi necessário escravizar. Primeiro o povo da terra. Depois os africanos. "Embora caros, os escravos africanos passaram a ser trazidos em quantidade. A vantagem, para os senhores de engenho, é que eles estavam mais acostumados a atividades artesanais e ao cultivo sistemático de lavoura", revelam no capítulo 2 ("Índios, Brancos e Negros").

A unidade territorial e lingüística - vale lembrar que até hoje foram catalogadas mais de 170 línguas faladas pelos índios brasileiros quando da chegada dos "estrangeiros" -aparece como terceiro fundamento, partindo da descoberta do ouro em Minas, quando a província atua como pólo de atração de homens e mercadorias. É o ouro quem produz, na análise dos autores, de um lado a união do território e, de outro, a elite da terra, que logo se preocupa com a criação de uma nação independente. "Idéia que toma forma à medida em que a colônia cresce economicamente e a Metrópole se perde em meio à fermentação revolucionária da segunda metade do século XVIII", concluem, avaliando que surgem a partir daí o hábito das eleições e a força do Parlamento.

A contradição

Partem então para o quarto fundamento: a complicada busca de uma conciliação entre desenvolvimento e democracia. Avaliam que, do ponto de vista econômico, a contradição entre produção e capitalismo e regime escravagista dificultou a entrada do Brasil na era moderna. E concluem que para seguir adiante foi necessário abolir a escravidão, "o que foi conseguido com grande demora e a duras penas". e o que é pior, "não significou a abolição da mentalidade autoritária, ainda que acabasse com a monarquia".

Viagem pela História do Brasil mostra então que, a partir da proclamação da república (1889 - 1930 - Capítulo 10), o controle do Estado se transforma no paradigma autoritário por excelência e que a herança escravagista perdura numa forma "modernizada" de diferenciar dominantes de dominados. E, em sua leitura histórica, o livro/CD-ROM mostra que desde o início do século forma-se no Brasil uma mentalidade de que é mais digno de ter o poder aquele que tem mais saber. Passa-se então a "colocar o progresso econômico como alternativa excludente da democracia política, assunto 'técnico' do qual o povo é sempre objeto e nunca sujeito".

Globalização

E partem para a análise do estabelecimento de um jogo: enquanto o projeto da nação está fundado na abertura para o novo, a tentativa de manter privilégios se refaz várias vezes no decorrer do século, sem nunca se chegar a um equilíbrio. Os autores reforçam que, mesmo nos momentos de domínio da democracia, nunca houve força política para se romper as estruturas hierárquicas; e, por outro lado, nem mesmo as ditaduras conseguiram sobreviver sem um grande reconhecimento do voto e representantes eleitos.

Numa análise conclusiva da história, avaliam que é exatamente neste jogo que se moldou a transformação da sociedade agrária em país urbano e industrial, com um capitalismo que não fixa idéias de concorrência, um Estado que precisa ser interventor para manter privilégios, cidadãos que têm participação formal na vida política, mas não direitos efetivos, brasileiros que constróem a identidade de um país aberto na fresta de um sistema de poder sempre propenso a ceder à tentação do autoritarismo.

E explica que a Viagem ... percorre essas idas e vindas, mas apenas até o momento em que surge um novo desafio: um povo globalizado, em meio a instituições ainda marcadas pelo predomínio de interesses particulares. Chegam até 1985, com a eleição de Tancredo Neves e o enceramento de um ciclo e início de outro cujas características estão se delineando. Não vão além por não possuírem ainda material adequado a uma análise histórica de prazo mais longo, como a adotada em toda a obra.

Como um livro de 1.500 páginas

Comercializado por R$ 65,00, o CD-ROM é acompanhado de um livro também batizado de Viagem pela História do Brasil (352 páginas) e que pode ser comprado separadamente por R$ 23,00. O trabalho, livro e CD-ROM, foi realizado em dois anos e meio de pesquisa e envolveu 19 pesquisadores. De acordo com Jorge Caldeira, foram consultadas 30 mil ilustrações, o que ele considera "a maior pesquisa iconográfica já feita".

O CD-ROM, que esgotou os 4.400 exemplares já na primeira semana de lançamento, mês passado, contém textos equivalentes a 1.500 páginas de um livro, onde são abordados todos os aspectos da formação do País, abrangendo desde o início da ocupação humana no atual território brasileiro até o fim do regime militar, em 1985, e a eleição de Tancredo Neves.

São 12 os capítulos: 1 - Primeiros encontros (1549); 2 - Índios, brancos e negros (1549-1580); 3 - A colônia de açúcar (1580-1700); 4 - O ouro e o território (1700-1750); 5 - o ouro e a nação (1750-1808); 6 - A colônia-reino (1808-1822); 7 - Primeiro Reinado (1822-1831); 8 - A luta contra o tráfico (1831-1850); 9 - O fim do Império (1850-1889); 10 - A República velha (1889-1930); 11 - O Brasil industrial (1930-1964); 12 - Regime militar (1964-1984).

A própria divisão dos capítulos e a escolha dos nomes dão uma idéia de como a abordagem é nova e diferente. Há casos simples, mas surpreendentes, revelados por documentos de pessoas comuns que viveram a história do Brasil meio que nos bastidores.

Os autores

A concepção geral do projeto ficou a cargo dos quatro autores. Jorge Caldeira, 41 anos, paulista, formado em Ciências Sociais, com mestrado em Sociologia, é o responsável pela direção geral e textos. Foi editor do jornal "Folha de São Paulo" e das revistas "Isto é" e "Exame" e é o autor do livro Mauá: Empresário do Império (Companhia das Letras), que já vendeu 110 mil exemplares e vai ser adaptado para o cinema por Fernando Meireles.

Único carioca do grupo de paulistas, Sergio Goes de Paula, 52 anos, doutor em Economia e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, é o responsável pela concepção geral dos textos. Claudio Marcondes, 42 anos, tradutor e editor, ficou com a edição de textos e imagens. E Flavio de Carvalho, 42 anos, formado em Arquitetura e Física e desde 1982 desenvolvendo projetos nas áreas de vídeo e computação gráfica, concebeu e realizou a estrutura interativa do CD-ROM.

A estrutura

De fácil navegação, com bela concepção gráfica e de som, o CD-ROM apresenta sempre o "Texto Principal", que funciona como a base do percurso. Quem vir as telas em seqüência, terá uma idéia abrangente do período. Há ainda os chamados "Almanaques", com explicações e informações variadas sobre os temas tratados no "Texto Principal"; as "Biografias" dos principais personagens que fizeram a história do Brasil - de Cristóvão Colombo à Marquesa de Santos ou Ulysses Guimarães - e uma relação imensa com "Documentos" importantes para a nossa história, tanto pelo valor oficial como por mostrarem aspectos cotidianos. Incluem desde o "Tratado de Tordesilhas" e a "Carta de caminha" aos atos institucionais do regime militar (AI-1 ao AI-5), passando por cartas de pessoas comuns, que permitem descobrir detalhes da história jamais revelados nos livros didáticos.

Curiosidades

O capítulo 3 (A colônia de açúcar - 1580/1700), situa o leitor/navegador no tempo e no espaço, abordando a decadência portuguesa e a Inquisição, estabelecida durante o reinado de Dom João III, em 1536. Dá detalhes sobres o Tribunal do Santo Ofício e conta tudo sobre a invasão dos holandeses no Nordeste, de 1630 a 1644, quando acontece a rebelião contra seu domínio e começa a surgir o sentido de brasilidade.

São fantásticos os mapas movendo-se na tela. Principalmente os antigos, como o que mostra as capitanias de Paraíba, Itamaracá e Pernambuco, no capítulo 3.

Biografia de Gregório de matos e Guerra (1624, Salvador - 1695, Recife), um dos mais importantes poetas do período colonial. "Numa época de literatura incipiente, ele falava de liberdade sexual, escravidão, mestiçagem e comércio".

A revelação (capítulo 4 - O ouro e o território - 1700/1750) de que, já em 1670, em Cananéia, o ouro havia sido descoberto, mas o fato escondido exatamente para que as minas não fossem perdidas para a Coroa, que já havia determinado o seu monopólio sobre os metais descobertos.

A "solene" chegada a Ouro Preto, no ciclo do ouro. A pompa é dada pela música de fundo (trecho de "Matinas Finados"). Quem nunca esteve na cidade vai ter vontade de conhecer.

A inclusão de "Desafinado" (1958) de Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça, com João Gilberto, no "Texto Principal" Brasil bossa-nova (que abre os links A Bossa Nova, Processo Brasileiro, Reinvenção do País.

Saída pela Cultura, "Texto Principal" que leva a links sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (1950); o Cinema Novo e a Jovem Guarda e "A explosão em 1968", outro "Texto Principal" que abre links para Protesto Estudantis; Música de Protesto (Geraldo Vandré e tal).

E o "Texto Principal" Diretas Já, que abre links para Comício pelas Diretas; A volta dos civis ao governo e Problemas do Novo Ciclo.