República

revista República, junho de 1997

Palavra do Diretor

A revolução do fascínio

Jorge Caldeira, entrevistado para a seção Prazer da Política, coordenou os trabalhos que resultaram na monumental Viagem Pela História do Brasil, livro e CD-Rom em edição da Companhia das Letras. Trata-se de um jornalista e um sociólogo por formação, mas seria tão pouco dizer só isso dele como dizer que Viagem... é um livro de trezentas e tantas páginas. Caldeira é um analista simbólico, categoria sobre a qual o antropólogo de empresa Thomaz Wood, Jr. fala também em Prazer da Política. A seção não leva esse nome por acaso. É um espaço afinado com os temas e as idéias que o ocupam. Caldeira e Wood são exemplares para o que tanto a seção como toda a República querem demonstrar: que político é cada cidadão comum e corrente em interação com a sociedade, que política não está confinada à ação do Estado e seus representantes, que pode – deve – ser fascinante, ou não será política. Não será a vida mesma, como aqui procura-se entender. Fazer política, conseqüentemente viver, nesta República, é um prazer.

Do tremendo trabalho que coordenou, Caldeira tira duas conclusões fundamentais: que a democracia brasileira tem sólidas estruturas históricas, e que essas estruturas estiveram ocultas, de 1930 para cá, pelo agigantamento do Estado. O que se diz no Brasil desde os primeiros idos de Getúlio Vargas é que o Estado é quem faz o país. Que a sociedade é mera massa de manobra, levada ao sabor das razões de Estado. Que quem estiver com o Estado, está com Deus. Quem não estiver, está em lugar nenhum. Criaram-se aí duas classes de cidadão: os estatais e os não-estatais. E criou-se junto, nas proporções dos processos delirantes de estatização, a megaestrutura autoritária que empanou a fluida, ágil e eficaz democracia brasileira. É o megaautoritarismo de Estado que as liminares contra as privatizações procuram defender.

Se é só o Estado que faz o país, então é só do Estado, para o Estado e pelo Estado que se faz política. Ou seja, política no Brasil não poderia ser outra coisa senão a brutal e recorrente chatice sem limites em que se transformou. O mesmo pode-se dizer da história – até agora. Caldeira e sua obra magnífica vão desencavar, em uma arqueologia da nação democrática brasileira, o fascínio perdido do brasileiro pela história – sua história, ilícita e violentamente usurpada pelo Estado. Se há alguma revolução a fazer, é essa: eliminar a sombra do Estado e reempossar sob o sol o prazer, o fascínio, a liberdade de agir, de cada um, em sociedade. É uma revolução extensiva a todas as áreas em que pessoas se relacionem para tecer suas organizações.

Todas permeadas pela ideologia estatal, como Thomaz Wood, Jr. detecta e detona na sociedade empresarial.

Caldeira e Wood desmontam sistemas e os reduzem a seu denominador comum, pessoas, a quem, multiplicadas pelo espírito, devolvem a dimensão histórica. Algo como roubar o fogo dos deuses para dar aos homens. República procura alinhar-se a esses, os que servem, no duplamente útil sentido do verbo servir.

O editor Reinaldo Azevedo mereceu a difícil exclusividade de uma entrevista com Ruth Cardoso. Não só: dona Ruth cedeu o perfil durante dois de seus ocupadíssimos dias para a câmara de Cristiano Mascaro. Hugo Studart passou outros dois dias submetendo à apreciação do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, uma coletânea maquiavélica de suas próprias – dele, ACM – citações; o presidente reconheceu todas e acrescentou algumas. O resultado, exclusivo, é o definitivo perfil do alter-ego do senador, o personagem Toninho Malvadeza. Studart acrescenta ao trabalho a história exclusiva do dia em que Malvadeza tentou estrangulá-lo. Maria Helena Passos arrancou com exclusividade, em Buenos Aires, toda a fúria do ex-superministro argentino Domingo Cavallo contra o governo que outrora integrou. O maior pianista vivo, Vladimir Ashkenazy, falou com exclusividade a Luis S. Krausz de sua pouco piedosa opinião sobre a humanidade. Marcelo Mendonça reporta com exclusividade o surgimento de uma nova elite nordestina. Esta veio a ser uma República exclusiva – excludente, jamais.

wagner carelli

 

O nascimento de uma nação

Um time de brilhantes intelectuais, com Jorge

Caldeira à frente, restabelece a dignidade da

democracia em monumental história do Brasil.

Por Luiz Felipe d'Avila e Wagner Carelli

A história do Brasil deixa este mês de ser uma história muito mal contada. Todo brasileiro que não se fia no que contam a seu próprio respeito, que não se tem na conta de pertencer a uma nação e que não tem seu país lá em grande conta deve embarcar na mudança que propõe a Viagem pela História do Brasil, trabalho monumental em livro e CD-Rom que corrige rumos, restabelece a dignidade e inaugura o prazer na forma de relatar e de conhecer o passado desses trópicos. Nem sempre felizes, sabe-se, mas nem sempre tristes – e isso é o que já se havia deixado de saber.

A Viagem... elimina, incinera, acaba com tiques e maneirismos de uma historiografia medíocre, permeada de interesses mesquinhos e manipuladora às escâncaras, fosse contada à esquerda ou à direita. É uma obra-marco, um ponto de transição na forma de pensar o país. Fica aí fundamentalmente esclarecido que a democracia brasileira não é um "acidente", uma concessão do Estado, mas uma idéia estruturada historicamente; que a miscigenação está amalgamada à possibilidade de uma civilização brasileira, a seu futuro e progresso; que voltar-se para o mundo sempre foi e continua a ser uma vocação do país. A Viagem... faz uma arqueologia da nação brasileira; busca e encontra todos os vestígios de seus alicerces e recupera seus edifícios.

"Os brasileiros conheciam essas estruturas, mas vieram a esquecê-las; essa obra é um resgate", diz Jorge Caldeira, co-autor e coordenador da Viagem.... Caldeira, sociólogo e jornalista, 41 anos, que transformou a história do Brasil em best-seller com Mauá, um Estadista do Império, esteve dois anos à frente do projeto e de uma equipe que em determinado momento chegou a ter 19 pessoas. Foi pouco tempo e pessoal para tão extraordinários resultados. O livro, de quase 400 páginas, é um milagre formulado entre a informação concisa, a inteligência abrangente e o prazer – infinito, como queria Aristóteles – do conhecimento. E o livro é apenas o CD resumido: no CD estão quase 200 biografias, a íntegra de todos os documentos fundamentais na formação do Brasil – da carta de Pero Vaz de Caminha até o AI-5 –, a mais ampla gama de ilustrações jamais reunidas em uma obra historiográfica brasileira e a possibilidade de referências cruzadas à enésima potência, com design gráfico e trilha sonora que poderiam ser a de um brilhante documentário cinematográfico. Todo o material está pronto para interligar-se à Internet e uma página (www.historiadobrasil.com.br) na Web já atende aos navegantes.

Se a Viagem... fosse um projeto acadêmico, com patrocínio oficial, tomaria uns 20 anos e toda uma academia, imaginando-se o remoto caso de que viesse a ser proposto – que dizer, de concluído. Foi obra de intelectuais brilhantes e independentes. Caldeira e o economista e historiador Sergio Goes de Paula, 52 anos, estruturaram a concepção da história e o texto; o editor Claudio Marcondes, 42 anos, organizou todo o material em trabalho de incrível complexidade; o físico Flávio de Carvalho, 40 anos, 15 de computação gráfica e programação, fez a catedral da estrutura informática. O projeto foi tocado em parceria com o banco BBA, que apostou desde o início nessa história não só difícil de apostar – de acreditar, até. : "Tão difícil", diz Caldeira, "que não sabíamos nem como redigir o contrato: não tínhamos uma definição precisa da obra, dos procedimentos. O banco é tão autor quanto qualquer um de nós".

Os pretensos autores do Brasil moderno têm certamente o que aprender na história dessa História. A Viagem... percorre o caminho da nação brasileira do descobrimento à morte de Tancredo Neves. Nesta entrevista exclusiva a República, Jorge Caldeira sonda breves indícios de rumos para o país, à luz de seu trabalho recente.

República: O que muda com a Viagem... na historiografia brasileira?

Jorge Caldeira: Fazemos aí um protesto contra o esquematismo da história do Brasil que se ensina hoje nas escolas – uma história de quinta categoria, uma coisa quase vergonhosa. A Viagem... conta a história de uma nação, não uma historieta secundária, de um país secundário. A história do Brasil é fascinante, e a Viagem... foi escrita para fascinar. Claro, não poderia ser a história da administração pública, do governo, do Estado, a vertente da historiografia que prevaleceu dos anos 30 para cá. Com essa vertente perdeu-se a idéia da nação em prol de um esquema teórico internacional que era viável naquele momento e que se casava com as razões do estatismo. Uma sociedade civil fortíssima e estruturas democráticas históricas de 500 anos naquele momento não pareciam importantes e foram dadas como inexistentes.

Quer dizer, o Estado passou a fazer história, e a história passou a ser o Estado.

Por aí. O processo de estatização que começou nos anos 30 deu certo economicamente, tornou-se a solução "moderna" e tinha um projeto de país embutido nela. Qual? O país que o Estado faz. Quem tem acesso aos benefícios do Estado, seja emprego registrado em carteira, seja salário mínimo, seja emprego público, faz parte de um Brasil moderno – quem não tem, está fora. A estatização dividiu o Brasil entre quem tinha acesso ao Estado e quem não tinha. E para você ter uma estrutura onde o Estado é importante é interessante dizer que a sociedade é inerte, ou que é desestruturada – porque só o Estado pode estruturar o Brasil. O que passou a se contar foi uma história autoritária, ou altamente estatizada.

Aquela história da esquerda segundo a qual o Brasil não é uma democracia intercalada por ditaduras, mas uma ditadura intercalada por democracias, seria apenas uma boa frase de efeito?

Não há a supremacia absoluta de uma ou de outra. À época da Independência, a grande instituição brasileira era a escravidão. Um terço da população era escrava. Cidadania e escravidão são termos absolutamente excludentes que definem os dois projetos básicos no Brasil: o de uma vertente mais autoritária e o de uma vertente mais democrática. A vertente mais democrática foi montada por José Bonifácio, um gênio político extraordinário, todo mundo deveria ser obrigado a ler seus textos. Em 1822, José Bonifácio chegou à seguinte conclusão: o Brasil só teria sentido se utilizasse seu passado de cruzamentos raciais, que é o que produz o cidadão livre no país, e ampliasse a partir daí a cidadania. Ou seja, só dava para formar o país transformando índio e escravo em cidadão. Essa vertente estruturou o Congresso, estruturou o respeito às leis internacionais que no Brasil é extraordinário, estruturou a desmilitarização.Construiu-se aí uma estrutura política estável como em poucas nações. Em um mesmo e dado período, o Brasil conta uma mudança de regime – a França, oito. Graças à vertente democrática, que sempre foi legalista, o Brasil tinha, já em 1912, fronteiras demarcadas com dez países, todas obtidas em tratados de demarcação física – daí que se registrem apenas duas guerras em sua história. O Brasil criou instituições estáveis e respeitadas antes de todos os seus vizinhos. Tem um congresso funcionando há 180 anos, coisa que nem os congressistas sabem. Foi inaugurado em 1826; em 1831, cinco anos depois, já tinha derrubado o imperador que fundara o Brasil. O Congresso, sozinho, organizou o país até o fim da Regência. Derrubou o Getúlio, o Jânio, o Jango, o Collor. O mesmo congresso que criou o parlamentarismo legalizou o regime militar. O congresso é uma necessidade estrutural tão poderosa na vida brasileira que nem ditadura dá certo sem ele.

Como se definia a vertente autoritária?

Pela oposição ao projeto de cidadania e pela manutenção da escravidão. A idéia central era dizer que o Brasil só poderia ser feito por homens especiais. D. Pedro 1º é o primeiro a pensar assim, mas a vertente é estabelecida pelos regressistas, de 1837 para frente, quando surge o partido conservador.

Como essas vertentes se transformam e se desenvolvem?

Na República, a vertente autoritária assumiu rapidamente a ideologia do técnico. O militar, o sanitarista, o médico têm mais saber, logo devem ter mais poder que os broncos. A idéia da ditadura positivista, o dístico "Ordem e Progresso", o que são? Sábios da ciência impondo o progresso a brutos. Na visão autoritária, este mundo se divide entre um bando de ilustrados e um bando de broncos.

Quer dizer, o fantasma da escravidão continua a permear todo o espectro político.

Continua. As vertentes democráticas também se refazem no dia seguinte, ao redor do mesmo eixo. Acabou o império, acabou a escravidão, a vertente se move no sentido a ampliar direito, dar voto direto, dar voto a analfabeto, ampliar a educação, descentralizar o poder econômico.

O que se tem da década de 30 para cá é uma predominância tremenda da vertente autoritária, com base na estatização. Essa estrutura continuou até os anos 90, e do golpe de 1964 em diante o que aconteceu foi uma exacerbação sem limites, delirante, da estatização, resultando na maior crise da história do Brasil. O país chegou a 1964 com 38 estatais: duas do império, 12 do Getúlio e 20 e poucas do Juscelino. O Roberto Campos, esse paradigma do liberalismo brasileiro, fez mais estatais em três anos do que se fizera desde a estatização do país, 40 e tantas. O Delfim, que não podia ficar para trás, fez 73, modesta média de 20 por ano. No governo Geisel foram 200 e tantas, o que dá uma por semana. Um delírio sem controle público nenhum, feito de maneira porca.

Quer dizer, escolher entre estatização e desestatização é escolher entre autoritarismo e democracia.

Por que desestatizar é bom? Porque provoca imediatamente a questão da cidadania. Se não houver um Estado que crie uma casta de privilegiados, todo brasileiro passa a ser igual de novo. Isso não tem nada a ver com discussão entre esquerda e direita. O PT hoje tem saudade do estatismo, acha que é exemplo de justiça um delírio de injustiça social que criou a pior distribuição de renda do mundo. E o que é a proposta dos sem-terra? É a de criar a maior estatal da história do Brasil, a estatal que dá terra, sustenta a plantação. Eles não querem se tornar cidadãos empresários, mas clientes do Estado. Estão tentando forçar a entrada no mundo do favor estatal. E o governo faz ou não o favor. Essa estrutura autoritária às vezes está instalada no que imaginamos seja o auge da idéia democrática.

O Estado parece interromper uma corrente civilizatória e tenta erradicar o passado – ou seja, a idéia da cidadania antecede a idéia autoritária.

Sim. Antes de existir o Estado brasileiro já existia uma regra de civilização implícita que comandava a evolução da história. Havia meios civilizados de se chegar a acordos. O Brasil não se faria sem acordos entre os índios e os portugueses. O português que chegava aqui não tinha o menor domínio, sequer conhecia a natureza. Ele poderia morrer de fome debaixo de uma árvore frutífera sem saber que aquilo era fruta. Ele não tinha idéia de quando plantar ou não. A ocupação do Brasil nada tem a ver com a ocupação dos Estados Unidos. Lá você abatia os índios a tiro, pegava a terra deles, plantava trigo na mesma época em que se plantava na Inglaterra – e crescia trigo. Aqui, se o português fizesse isso, aquele passarinho estranho comia a semente, o tatu comia...

Era todo um novo código.

Um código de civilização – que os índios dominavam. Seu saber era extenso, extraordinário, eles tinham todo um método de vida nos trópicos, de agricultura tropical, de manejo da cultura. E não era possível dominá-los pela força. Eles não tinham um Estado centralizado, não dava para conquistá-los à maneira do que se fez no Peru. Lá o espanhol seqüestra o inca, mata, e é dono de todo o território. Aqui o português seqüestra um cacique, mata, vai lá um outro cacique, varre aquela tribo, se instala e pronto, não acontece nada. Eram 170 línguas indígenas, dezenas de milhares de tribos, não tinha como dominá-las. Nem como dominar o conhecimento dos índios. A única forma de chegar a esses domínios era o casamento. Não que o português quisesse, mas ou ele era inimigo do índio, ou estava casado na tribo: essas eram as duas únicas realidades que o índio conhecia. Aceitar alguém de fora, para um índio, era dar uma mulher em casamento e tornar esse alguém parente de todos. Esse procedimento foi absolutamente estrutural para que a nação brasileira viesse a ser formada. Foi esse acordo que tornou possível o Brasil, e os frutos desse acordo são os brasileiros.