Prefácio do CD-ROM "Viagem pela História do Brasil"

Uma nação não é feita apenas de circunstâncias, embora elas sejam importantes. Uma nação se constrói a partir de fundamentos que moldam a identidade de seu povo, definindo seus costumes, instituições, estabelecendo o modo pelo qual se relaciona com as outras nações e absorve as tendências dominantes em cada momento. São esses fundamentos, apresentados a partir daquelas circunstâncias, que procuramos mostrar na Viagem pela História do Brasil.

Quais são eles?

Em primeiro lugar a adaptação, que se fez imperativa a partir do momento em que os primeiros europeus por aqui chegaram e perceberam que para sobreviver no Novo Mundo era necessário algo mais que seus costumes e crenças tradicionais. A força das armas que lhes garantia conquistas era inútil numa terra onde tomar espaço era fácil - mas muito difícil sobreviver no território desconhecido. Para isto, as circunstâncias só indicaram um caminho: aceitar o costume local para poderem ter acesso ao conhecimento dos homens da terra. A via aberta não era a guerra, mas o casamento, segundo a regra que obrigava cada estrangeiro a "ter" uma mulher da tribo para ser aceito por ela, estabelecendo uma complexa rede de parentesco com os demais membros. Parente ou inimigo, eram as únicas formas de relação possíveis para os nativos. A mistura de raças e culturas que assim se fez, contrária à tendência européia então - e até hoje - dominante, marcou de maneira definitiva a constituição do povo brasileiro, dando-lhe alguns de seus traços básicos: a liberalidade sexual relativamente forte, a cordialidade com o estrangeiro e a inclinação para aceitar o estranho.

O segundo fundamento tem um sentido contrário. Não adaptativo, mas impositivo; não cordial, mas violento. Se para aqui viver foi necessário casar, para produzir foi necessário escravizar. De início os "negros da terra", nativos pertencentes às tribos inimigas e escravizados com ajuda dos novos parentes, depois os negros da África, trazidos pelos portugueses, construíram primeiro a Colônia, depois o Reino e o Império. A longa duração do regime escravocrata marcou indelevelmente a cultura brasileira: o abismo entre elite e povo, o autoritarismo nas relações com os que estão abaixo são heranças de quatro séculos de violência institucionalizada.

O terceiro fundamento diz respeito à unidade, territorial, lingüística e cultural. A descoberta do ouro em Minas Gerais é parte da explicação: em poucas décadas transformada em centro da economia, a província atuou como pólo de atração de homens e mercadorias, agregando o que antes era disperso, e exigindo da Metrópole um controle antes desnecessário. O período em que isto se deu é mais uma parte da explicação: ocorressem as descobertas de ouro e diamantes dois séculos antes, como acontecera no México e no Peru, talvez não fosse garantida a unidade. Ocorrendo num momento em que grande parte do território já fora conquistada pelos próprios filhos da terra, e em que um sentimento de brasilidade já havia sido forjado na luta contra os holandeses, o resultado foi manter unido um povo que tinha muitas razões para se dispersar.

O ouro produziu não só a união do território, mas também uma elite da terra que se preocupou com a criação de uma Nação independente. A idéia tomou forma à medida que a Colônia crescia economicamente e a Metrópole se perdia em meio à fermentação revolucionária da segunda metade do século XVIII. E acabou resolvida segundo a forma híbrida das tendências fundamentais da formação: a adaptação do rei português ao papel de fundador do país, associada à vontade de criar estruturas econômicas e políticas abertas como as que se instalavam na França e nos Estados Unidos. Dessas tendências contraditórias nasceriam caminhos opostos, que a unidade da Coroa permitiu conviverem. De um lado, a idéia de fundar as instituições sobre a base de abertura dos casamentos mistos, com a transformação de índios e escravos em cidadãos. Do outro, a tentativa de reforçar a distância entre o topo e a base, com a transformação de senhores de escravos em nobres, numa caricatura do Antigo Regime que se dissolvia. Cada uma deixou seus traços. A primeira, o hábito das eleições e a força do Parlamento; a segunda, a realidade crua da falta de cidadania e direitos, a imensa distância entre ricos e pobres.

Assim se firmou o quarto fundamento característico do modo de ser brasileiro: a complicada busca de uma conciliação entre desenvolvimento e democracia. Do ponto de vista econômico, a contradição entre produção capitalista e regime escravista dificultou a entrada do Brasil na era moderna. Para seguir adiante, era preciso abolir a escravidão - e o que foi conseguido com grande demora e a duras penas não significou a abolição da mentalidade autoritária, ainda que acabasse com a monarquia.

Proclamada a República, o controle do Estado se transformou no paradigma autoritário por excelência. Reduzindo ao mínimo a conquista democrática que foi a transformação - apenas formal - dos brasileiros em cidadãos, a herança escravista perdurou numa forma "modernizada" de diferenciar dominantes e dominados. A pretendida superioridade deslocou-se dos nobres e senhores para os técnicos: desde o começo do século forma-se no Brasil a mentalidade de que é mais digno de ter poder aquele que tem mais saber. Apresentada de diversas maneiras, das quais o germe de populismo implantado com a revolução de 1930 é apenas uma, esta mentalidade define a fórmula brasileira de autoritarismo: colocar o progresso econômico como alternativa excludente da democracia política, assunto "técnico" do qual o povo é sempre objeto, nunca sujeito.

Com idas e vindas, o jogo entre um projeto de Nação fundado na abertura para o novo e a tentativa de manter privilégios se refez várias vezes no correr do século, sem nunca se chegar a um equilíbrio. Nos momentos de domínio da democracia, nunca houve força política para se romper as estruturas hierárquicas; por outro lado, nem mesmo ditaduras conseguiram sobreviver sem um grau de reconhecimento do voto e representantes eleitos. Neste jogo moldou-se a transformação da sociedade agrária em país urbano e industrial, com um capitalismo que não firma idéias de concorrência, um Estado que precisa ser interventor para manter privilégios, cidadãos que têm participação formal na vida política mas não direitos efetivos, brasileiros que constróem a identidade de um país aberto nas frestas de um sistema de poder sempre propenso a ceder à tentação do autoritarismo.

A Viagem pela História do Brasil percorre essas idas e vindas até o momento em que um novo desafio se coloca: um povo globalizado tentando achar seu lugar num mundo globalizado, em meio a instituições ainda marcadas pelo predomínio de interesses particulares. Com isto, esperamos ter contribuído para ajudar cada brasileiro a definir suas opções próprias para o futuro.

Jorge Caldeira
Sergio Goes de Paula

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